As últimas duas semanas foram intensas para as relações exteriores brasileiras. O presidente Jair Bolsonaro viajou do dia 22 de Outubro, quando chegou ao Japão, até o dia 31 de Outubro, quando retornou ao Brasil após passar também por China, Emirados Árabes Unidos, Catar e Arábia Saudita. No mesmo período ocorreram protestos no Chile e eleições presidenciais em três de nossos vizinhos, com controvérsias na Bolívia, adiamento da decisão no Uruguai e vitória em primeiro turno na Argentina.
Uma variedade tão grande de temas, países e desafios em um período curto de tempo fornece uma ótima oportunidade de avaliar os rumos atuais das relações exteriores do país. Para os lados bons e os lados ruins. É fornecida uma visão mais ampla de prioridades, do que é apenas discurso e do que recebe a atenção devida; e também o que não recebe a atenção devida. Começando pela visita de Bolsonaro ao Japão, o presidente representou o país na entronização do novo imperador.
No Oriente
Foi uma visita, basicamente, de boas relações. A entronização de um imperador japonês é uma ocasião que, no século XX inteiro, ocorreu apenas três vezes. Os laços centenários entre Brasil e Japão, com uma grande comunidade nipônica e de seus descendentes em terras brasileiras, e outra grande comunidade brasileira em terras nipônicas, precisam ser valorizados. Vão além de relações comerciais. Não se pode incorrer novamente no erro cometido durante o governo Dilma, de deixar essas relações estremecidas.
Na época, o governo cancelou viagens em cima da hora e até deu um “chá de cadeira” em Fumihito, o irmão mais novo do atual imperador. O motivo de falar desses aspectos culturais e sociais é frisar que não se pode avaliar essa viagem apenas pela ausência de acordos assinados entre Brasil e Japão. Foi uma circunstância especial, com outras prioridades, e que deveriam ser cumpridas. Bolsonaro se encontrou com o primeiro-ministro Abe Shinzo de forma protocolar, até pela quantidade de líderes estrangeiros em visita ao Japão.
De lá, a comitiva brasileira partiu para a China, onde Bolsonaro foi recebido pelo presidente Xi Jinping. Foram assinados acordos bilaterais em agricultura, comércio, energia, educação, pesquisa e infraestrutura. Tivemos o convite oficial para a visita de Xi Jinping ao Brasil, já que o país recebe a 11ª cúpula dos BRICS em duas semanas, convite aos chineses para participarem do leilão da cessão onerosa de gás e óleo e nota anunciando o cronograma de lançamento do próximo satélite conjunto
Outro anúncio foi o da isenção unilateral de visto para a entrada de turistas chineses no Brasil; importante frisar o unilateral, já que brasileiros continuarão precisando de visto para visitar a China. No fim das contas foi um saudável distanciamento da retórica anterior de Bolsonaro e de certas alas do governo: quando Bolsonaro visitou Taiwan, o discurso de que a China é o “perigo vermelho”, quando o presidente disse que a China queria “comprar o Brasil”, dentre outros.
Estamos falando da segunda maior economia do mundo; a primeira, segundo alguns critérios. Um dos principais parceiros comerciais brasileiros e hoje um dos maiores investidores do mundo, especialmente em projetos de infraestrutura. Uma abordagem pragmática não é um “recuo” ou uma concessão, mas uma necessidade, uma maneira madura de lidar com um parceiro. Fazer negócios significa construir relações, mas não precisa significar morrer de amores.
O príncipe “quase irmão”
“Morrer de amores” é um termo mais apropriado para a visita de Bolsonaro aos sauditas. Antes ele passou pelos Emirados Árabes Unidos, onde assinou acordos em áreas de segurança, defesa e economia, incluindo investimentos de um dos fundos soberanos dos EAU. De lá foi para o Catar, outro Estado da região que é, na verdade, uma imensa propriedade privada de uma família; no caso, os al-Thani. Novamente, acordos assinados e discursos otimistas
Bolsonaro visitou um estádio da Copa do Mundo de 2022, elogiando seus custos. Era pra ser uma alfinetada na festa de superfaturamentos que foram os estádios brasileiros da Copa de 2014, mas é bom lembrar aos leitores do fato de que o Catar está empregando mão de obra em situação análoga à escravidão; nem tudo é maravilha. Falando em Copa, um dos acordos foi para cooperação em grandes eventos esportivos e foi anunciado a isenção recíproca de vistos entre os dois países.
Finalmente, no país da família Saud, Bolsonaro assinou diversos atos de parcerias e cooperação. Principalmente, anunciou investimentos de até dez bilhões de dólares no Brasil pelo Fundo de Investimento Público saudita. Também trocou afagos com o príncipe-herdeiro do trono, Mohammed bin Salman: o presidente seria “quase irmão” do príncipe saudita, além de fotos sorridentes e de que “todo mundo gostaria de passar uma tarde com um príncipe”. No caso, um ditador de poder virtualmente absoluto e sanguinário.
Além disso, enquanto o chanceler Ernesto Araújo promove encontros sobre proteção aos cristãos pelo mundo, fala em uma civilização ocidental de valores judaicos-cristãos e diz que os valores devem vir acima do pragmatismo nas relações internacionais, é bom lembrar que as terras sauditas são um lugar onde é proibido ter outra religião que não o Islã. Um país onde é proibido estabelecer uma igreja. Onde pregar o cristianismo para um muçulmano é punível com a morte e uma Bíblia na mala proíbe sua entrada no país.
Na vizinhança
Enquanto isso, na América Latina, o peronista Alberto Fernández foi eleito em primeiro turno na Argentina. Recebeu os parabéns pela eleição democrática de líderes diversos, incluindo os à direita do continente, como Mário Abdo Benítez do Paraguai, Sebastián Piñera do Chile e o secretário de Estado dos EUA, Mike Pompeo. Todas as felicitações respondidas de forma cordial pelo presidente-eleito vizinho. Bolsonaro, por sua vez, disse que não daria os parabéns.
O chanceler vai além e escreve publicamente que “forças do mal estão celebrando” e que “as forças da democracia estão lamentando”, um uso de palavras tão sentimental e maniqueísta que seria cafona até no auge da Guerra Fria. Mais do que cafonas, são indelicadas e imprecisas, já que a eleição argentina não teve nenhum indício de irregularidade. Ao ponto em que o chanceler da gestão Macri, Jorge Faurie, enviar uma carta à embaixada brasileira em Buenos Aires.
Nela, condena “frases inapropriadas" e pede "maior prudência" às declarações sobre o presidente-eleito da Argentina. Alguns podem justificar essa postura do governo brasileiro com as demonstrações de “Lula Livre” de Fernández. Ordem cronológica. Os comentários de Bolsonaro sobre as eleições argentinas foram na sua visita ao presidente Macri, condenando a chapa da oposição e conclamando apoio ao ocupante do cargo, foi no dia Sete de Junho de 2019.
Já Fernández visita Lula em Curitiba no dia Cinco de Julho. Em suma: o presidente brasileiro fez uma aposta, ao apoiar abertamente um candidato na eleição vizinha e, tão abertamente quanto, antagonizar o outro. O candidato antagonizado dobrou a aposta, demonstrando apoio ao principal nome da esquerda brasileira. Bolsonaro perdeu a aposta nas urnas vizinhas. Cabe então à ele remendar a situação que ele mesmo criou, pelo bem dessas relações.
Boas parcerias sempre
A Argentina é um dos principais parceiros comerciais brasileiros, além de dividir uma fronteira. É uma economia onde produtos industrializados brasileiros e serviços ainda são competitivos. Enquanto o Brasil exporta carne para os sauditas, exporta carros, partes mecânicas, dentre outros, para a Argentina. A situação chegou ao ponto do candidato de centro-direita na eleição uruguaia, Luis Lacalle Pou, rejeitar as demonstrações de apoio do presidente Bolsonaro.
"Não me parece uma coisa boa que diferentes políticos, e nesse caso um governante, opinem sobre o que pode acontecer em outro país O Uruguai, por sorte, não decide o que os brasileiros pensam, decide apenas o que acontece e o que precisam os uruguaios". Essas foram suas palavras, e estão precisas em sua mensagem, em um prenúncio de crise desnecessária com os vizinhos. Qual o balanço dessas semanas, então? A necessidade de um pragmatismo coerente nas relações exteriores brasileiras.
Se a pauta do presidente é destacar a atração de investimentos e parceiros econômicos, que assim seja. Se a pauta é ter relações apenas com os governos ideologicamente próximos, no caso os cristãos de direita, assim seja também. Um ou outro, entretanto. A postura elogiável perante a China, deixando de lado declarações mais quentes, tem que se repetir. Economicamente, é importante fazer negócios com os sauditas, um governo com todas as críticas possíveis e que contradiz frontalmente o discurso do chanceler.
Não é necessário, entretanto, a troca de afagos, de uma quase irmandade com um líder internacionalmente visto com desconfiança. Ao mesmo tempo, também não são necessários abraços e carinhos com o novo presidente argentino. São necessárias sim, entretanto, boas relações, que incluem, no mínimo, não chamar a vitória eleitoral nos vizinhos de “vitória do mal”, como em um desenho infantil. As relações são entre Brasil e Argentina, maiores que as entre Bolsonaro e Fernández.
A mesma coisa vale para o Uruguai. Oras, se for para seguir um critério ideológico, então qual o cabimento de ser “quase irmão” de um monarca que ordena que seus militares cometam crimes de guerra no Iêmen, de um país que comprovadamente financiou alguns dos grupos que mais mataram cristãos na História recente? Novamente, ou se possui uma abordagem comercial, ou uma abordagem ideológica. Alternar entre as duas significa que sua suposta ideologia democrática cristã de direita tem um preço em petrodólares.
Bolsonaro pode, em seu íntimo, torcer pela vitória do candidato de direita em uma eleição. Já o Presidente do Brasil deve manter boas relações com qualquer vitorioso em um processo democrático; o cargo é grafado com maiúsculas pois fala-se do Chefe de Estado brasileiro, não de Jair Bolsonaro como indivíduo. O Brasil não precisa ser sempre um amigo de todos, mas precisa construir relações com todos seus parceiros, seja no socialismo chinês, nos Estados familiares árabes ou na vizinhança sul-americana.