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A palavra “polarização” vai continuar na moda agora que os colombianos escolheram os dois candidatos que disputarão o segundo turno de suas eleições presidenciais. De um lado está Gustavo Petro, da esquerda radical, que enfrenta Rodolfo Hernández, da direita populista. Existem algumas possíveis “pegadinhas” para entendermos o caminho para este segundo turno, além de uma grande incógnita sobre a governabilidade dos vencedores.
Curiosamente, o termo “polarizado” já esteve presente aqui em nosso espaço, quando falamos das eleições colombianas no início do ano. Na época, comentamos que Petro despontava como o principal nome da esquerda, enquanto ainda faltava um nome forte para a direita. Foi exatamente o que aconteceu. Inicialmente esse nome parecia ser o de Federico Gutiérrez, ex-prefeito de Medellín. Nas últimas semanas, entretanto, Gutiérrez caiu nas pesquisas e, na véspera do pleito de 29 de maio, era difícil cravar sua passagem ao segundo turno.
Conflito
Na época também comentamos que a eleição caminhava em passos difíceis por dois motivos. Primeiro, o histórico recente colombiano, de violento conflito interno que dura décadas, envolvendo quadrilhas narcotraficantes, guerrilhas de esquerda radical e milícias paramilitares de extrema direita. As décadas de conflito, iniciado na década de 1950, deixaram centenas de milhares de mortos e milhões de deslocados e refugiados.
O conflito faz com que a violência política seja “comum” no país, com praticamente todos os presidenciáveis sofrendo ameaças críveis de morte, além do assassinato de diferentes lideranças, especialmente na zona rural do país. Essa memória coletiva sangrenta, mais a difícil implementação do acordo de paz assinado entre o Estado colombiano, durante a presidência de Juan Manuel Santos, e as antigas FARC, faz com que esse seja um tópico presente no debate eleitoral.
Essa presença ocorre especialmente pelo fato de que Gustavo Petro, de 62 anos de idade, foi integrante do M-19, um grupo guerrilheiro de esquerda que atuou nos anos 1970 e 1980, especialmente em operações urbanas. A oposição afirma que Petro, uma vez no poder, será “leniente” com as guerrilhas, como os dissidentes das FARC que ainda atuam ou com o ELN, ou até mesmo que a eleição do senador e ex-prefeito de Bogotá seria um passo rumo ao “comunismo”. A Colômbia, inclusive, não possui uma presidência de esquerda desde 1998.
A primeira acusação é presente no discurso da direita de Gutiérrez, de Iván Duque e do ex-presidente Álvaro Uribe, processado por subornos e abuso de poder. Já a segunda acusação é mais presente no discurso de Rodolfo Hernández, empresário de 77 anos de idade e dono de uma retórica mais midiática, “bombástica”, o “rei do Tiktok”, uma referência à rede social chinesa de vídeos curtos. A plataforma do “candidato antissistema”, que batiza sua coalizão, é a “luta contra a corrupção”.
Problemas econômicos e resultados
O segundo motivo que faz da eleição uma corrida difícil é o dos recentes conflitos sociais na Colômbia, com diversos protestos contra o governo Iván Duque, incluindo a repressão policial que deixou mais de uma dezena de mortos em condições suspeitas. O país passa por um dos maiores índices de desemprego registrados nas últimas duas décadas, além da alta inflação. Iván Duque sai com um dos maiores índices de rejeição de um presidente em fim de mandato e, provavelmente, isso prejudicou o seu candidato Gutiérrez.
Em suma, esse é o contexto em que as eleições são disputadas. Dois candidatos bastante díspares e de históricos diferentes, em um país convulsionado tanto por questões econômicas atuais quanto por feridas históricas. No primeiro turno, com um comparecimento de 54,8% do eleitorado, Gustavo Petro ficou com 40% dos votos, enquanto Rodolfo Hernández teve 28,1%. Gutiérrez ficou em terceiro, com 23,9%, precisando de 900 mil votos para ter ido ao segundo turno. Em quarto ficou o verde Sergio Fajardo, com 4,2% dos votos, e candidaturas menores de direita somaram 1,5%.
Alguns leitores podem ter notado que a soma das duas candidaturas de direita, em segundo e em terceiro lugar, corresponde à 52% do eleitorado votante. Algumas pesquisas de segundo turno já apontam uma vitória de Hernández com margem confortável. Gutiérrez já declarou apoio ao candidato, contra Petro, embora isso talvez nem fosse necessário. A rejeição de Petro deve ser seu maior empecilho e, hoje, ele não teria muitas chances.
Petro terá três semanas para trabalhar sua candidatura perante ao público, com duas esperanças. Primeiro, como “apenas” 54,8% do eleitorado compareceu, ele trabalha com a possibilidade de levar mais pessoas para as urnas. Segundo, colocar Hernández no campo da extrema-direita e associar seu rival aos problemas econômicos de Duque, aos abusos de poder de Uribe ou até mesmo à figuras internacionais da direita, como Donald Trump e Jair Bolsonaro, conclamando os eleitores para um voto contra essa direita.
Pegadinhas e governabilidade
Ambas as esperanças são, entretanto, pegadinhas, após um olhar mais atento. Primeiro, o comparecimento eleitoral pode soar baixo, mas foi o mais alto em um primeiro turno colombiano desde o fim da Guerra Fria. Não será tarefa fácil tirar as pessoas de suas casas para votar. Segundo, uma campanha baseada na rejeição provavelmente terá mais sucesso contra Petro, não ao seu favor, o que afeta diretamente o fator citado anteriormente.
Terceiro, embora seja fácil colocar Hernández ao lado dessas figuras, é uma visão um pouco superficial das eleições colombianas. Sim, sua trajetória de empresário e o discurso “anticorrupção” e anticomunismo o aproxima de outras figuras da direita, mas ele, por exemplo, já declarou ser favorável à descriminalização do aborto de gestação em algumas circunstâncias, apoia programas de renda universal, flexibilização das penas contra usuários de drogas e cotas para mulheres na política. Muito longe de Uribe, por exemplo.
Tudo isso sem mencionarmos a questão da “governabilidade”. Os colombianos elegeram seu congresso nacional no início de março. Infelizmente o assunto foi eclipsado pela guerra na Ucrânia aqui em nosso espaço. O Pacto Histórico, de Petro, conseguiu os melhores resultados de uma plataforma de esquerda em décadas, tendo a maior bancada do Senado e a segunda maior da Câmara.
Ainda assim, ambas as casas estão fragmentadas. Qualquer presidente eleito terá que negociar com os partidos, incluindo os com bandeiras políticas pouco definidas, amorfos, flutuando entre os donos do poder, algo como o “centrão” brasileiro. A situação de Hernández é ainda mais curiosa, já que sua coalizão elegeu apenas dois deputados, com pouco mais de 1% dos votos. Ele precisará costurar acordos com os partidos da direita, o que também explica o apoio de Gutiérrez.
Na campanha, resta para Petro fazer o contrário do que fez até agora. Era o candidato da esquerda que se colocava como “antissistema”, como alguém de fora da estrutura política tradicionalmente de direita do país. Se ele pretende vencer, precisa se vestir de administrador experiente, ex-prefeito da capital e maior cidade do país, contra um “aventureiro falastrão”. No voto da direita contra a esquerda, do nós versus eles, Hernández já está com uma mão na taça.