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As notícias de mais uma rodada de conversas de paz entre Rússia e Ucrânia podem ser animadoras, mas, infelizmente, não possuem muitos motivos para ser. Delegações dos dois países, além das conversas mantidas em Belarus, irão se encontrar na Turquia, atualmente a potência regional com maior capacidade de ser mediadora do conflito. Será o segundo encontro mediado pelo governo turco. O primeiro foi realizado no dia dez de março e não produziu resultados, e não existem muitos motivos para acreditar que este futuro encontro será tão diferente, sendo importante uma dose de ceticismo.
O motivo do interesse da Turquia em mediar esses encontros já foi brevemente explicado aqui em nosso espaço. Em suma, trata-se de uma guerra na sua região, que afeta o importante Mar Negro. O conflito envolve dois de seus mais importantes parceiros, sendo que a Ucrânia possui um acordo de livre-comércio com a Turquia, enquanto a Rússia possui diversos projetos de infraestrutura na Turquia. A Turquia também possui laços históricos com a Crimeia, onde parte da população é tártara, um povo túrquico. Finalmente, a questão do prestígio. Sair dessa crise como o governo responsável pela paz pode trazer frutos para a Turquia, um país atualmente sob algumas sanções dos EUA.
Por esses interesses que a Turquia voltou a desempenhar o papel de mediadora. Na última cúpula da OTAN, em Bruxelas, semana passada, o presidente turco, Recep Erdogan, afirmou que ligaria para Vladimir Putin no final de semana. “Vou procurar maneiras de acabar com esse problema dizendo a ele para se tornar um arquiteto pela paz e fazer uma saída honrosa”. Dessa conversa telefônica, no último domingo, saiu a proposta para um novo encontro entre as duas delegações, nos dias 29 e 30 de março.
Além de convidar as duas delegações, Erdogan, na última quinta-feira, talvez tenha cometido alguma indiscrição. Segundo o líder turco, Ucrânia e Rússia já teriam concordado em quatro das seis exigências russas. O abandono ucraniano de qualquer futura adesão à OTAN, o retorno ao status de idioma oficial da língua russa na Ucrânia, o desarmamento e as garantias mútuas de segurança. Restariam, como pendências, as questões territoriais: o reconhecimento da Crimeia como russa e a eventual independência das regiões ao leste.
Contra-ataques ucranianos
O ministro das Relações Exteriores ucraniano, Dmytro Kuleba, rapidamente negou que já exista alguma concórdia, afirmando que "o processo de negociação é muito difícil” e que “insistimos, em primeiro lugar, em um cessar-fogo, garantias de segurança e integridade territorial da Ucrânia". Claro, a ação foi motivada inclusive para evitar um enfraquecimento da posição internacional ucraniana. Países podem rever planos de envio de armamentos, por exemplo, pensando que a Ucrânia estaria perto de aceitar as condições exigidas pela Rússia. Também poderia ocorrer uma queda na moral interna ucraniana.
Nos últimos dias, forças ucranianas também realizaram contra-ofensivas, retomando parte dos territórios previamente controlados pelas forças russas. Não se sabe exatamente a capacidade ucraniana de manter o fôlego dos contra-ataques. O presidente do país, Volodymyr Zelensky, continua seus pedidos internacionais por mais armamento. O destinatário mais recente foi o governo de Israel, que busca se manter neutro. Não somente por suas relações com a Rússia, mas pelo fato de que existe uma grande comunidade originária da ex-URSS em Israel, tanto da Rússia quanto da Ucrânia.
Zelensky também tem dado declarações contraditórias sobre a integridade territorial da Ucrânia. Por vezes, mantém-se irredutível e afirma que seu governo não aceitará qualquer concessão territorial. Em outras circunstâncias, entretanto, afirma que um acordo que seja aprovado por referendo poderia ser aceito. O que soa democrático e saudável em um primeiro momento precisa passar por uma pergunta: quem é o eleitorado desse referendo? Por exemplo, um referendo sobre o status da Crimeia em que o eleitorado seja apenas os habitantes da península significaria a manutenção do existente domínio russo.
A defesa de um possível referendo pode ser, então, uma maneira de “manter as aparências” em uma eventual concessão territorial. Não seria a primeira vez em que isso é feito. Historicamente, talvez o principal exemplo seja o plebiscito para a anexação de Veneza pela Itália, em 1866, após uma guerra contra a Áustria imperial. Em paralelo às declarações de Zelensky, as forças armadas da Rússia realizaram um pronunciamento na última sexta-feira, conduzido pelo general Sergei Rudskoy.
Ofensiva russa
Ele afirmou que “as principais tarefas da primeira etapa da operação foram concluídas” e que “o potencial de combate das forças armadas da Ucrânia foi significativamente reduzido, permitindo-nos concentrar os principais esforços em alcançar o objetivo principal, a libertação de Donbass". Segundo o mesmo pronunciamento, as ações perto das “cidades maiores” ucranianas seriam apenas para distrair as principais forças da Ucrânia e mantê-las longe do leste do país, o suposto “objetivo principal”.
O pronunciamento é parte do esforço russo de “reescrever” os eventos recentes, disfarçando o revés inicial. Os primeiros dias da invasão russa deixaram claro que o objetivo da ofensiva era um ataque de decapitação contra a capital ucraniana. E essa ofensiva fracassou, tanto por falhas russas quanto por méritos ucranianos. Dizer agora que o objetivo principal era o leste do país é uma tentativa de maquiar esses erros. Ao mesmo tempo, se as autoridades militares russas falam em uma “segunda etapa”, podemos esperar uma ofensiva renovada, ao leste e ao norte.
Junto com essas declarações, chegam as notícias de que a Rússia estaria enviando mais de suas forças de primeira linha para a Ucrânia, incluindo os mercenários profissionais do Grupo Wagner. A Rússia também intensificou ataques contra a infraestrutura ucraniana, como depósitos de combustível e o sistema de distribuição de energia, coisa que havia evitado nos primeiros dias. Junto com essa possível ofensiva renovada russa, Putin ganhou um “presente” para seu discurso interno, diretamente de Joe Biden.
O presidente dos EUA afirmou, no último sábado, que “Putin não pode permanecer no poder”. A Casa Branca tentou “esclarecer”, afirmando que era uma referência ao fato de Putin estar abusando de seu poder. A declaração encontrou detratores e apoiadores. Um dos críticos foi o presidente francês, Emmanuel Macron, que afirmou que a declaração como “não produtiva”. E certamente será bastante utilizada por Putin para seu discurso interno, de que os EUA são o verdadeiro inimigo, que usam os ucranianos como fantoches, e que Washington quer interferir na Rússia e derrubar o governo.
Em suma, temos declarações contraditórias sobre as demandas para o fim do conflito, com dois lados retomando o fôlego para renovar os combates, pedindo mais armamentos ou concentrando mais forças. Ambas as lideranças políticas se sentem encorajadas perante seus públicos internos. Existem motivos para um possível fim da guerra? Sim. Ela está se mostrando muito mais custosa do que o previsto ou tolerável? Também. O cenário, entretanto, se assemelha muito mais a dois lados tentando ganhar tempo, para fortalecerem ainda mais suas posições, já que o desenvolvimento de alguns dias de combate pode mudar o tom das conversas.
Isso significa necessariamente que as conversas são uma cortina de fumaça? Talvez não tanto, apenas a ideia de manter uma linha de comunicação aberta para uma oportunidade futura. Não no presente, com fichas ainda apostadas nos campos de batalha. Seja um impasse ainda maior, benéfico para a Ucrânia, ou uma vitória mais clara, um objetivo russo. Finalmente, existe outro desenvolvimento que interessa ao governo turco e que pode fazer parte dos cálculos futuros da Rússia.
Cáucaso e ceticismo
No último dia 26 de março, o governo do Azerbaijão pediu ao governo russo para retirar o exército da Armênia e "grupos armados ilegais armênios" dos "territórios internacionalmente reconhecidos" como do Azerbaijão. O que os armênios chamam de Nagorno Karabakh, uma região cuja maioria da população é armênia. A solicitação do Azerbaijão aos russos se dá pelo fato de que a Rússia é a garantidora do acordo de paz entre os dois vizinhos rivais do Cáucaso. A Rússia também acusou as forças azerbaijanas de terem violado a zona desarmada que foi criada como tampão entre os países.
A Rússia é, historicamente, a maior aliada da Armênia. Já o Azerbaijão se fia em sua aliança com a Turquia. Com a Rússia envolvida numa guerra muito mais desgastante do que imaginaram na Ucrânia, usando inclusive boa parte de suas forças baseadas no Cáucaso, o Azerbaijão pode estar apostando que a Rússia não terá força suficiente para proteger seus aliados. Também pode considerar que a recente vitória eleitoral do premiê armênio Nikol Pashinyan, em junho de 2021, um governante pró-Ocidente e, de certo modo, pacifista, significa que os armênios não estarão interessados em mais uma guerra.
Ou, ainda, que a Rússia já não estaria muito disposta a socorrer o governo armenio, quanto mais agora. Pashinyan, inclusive, sofreu um "ultimato" militar antes das eleições, mas resistiu. Na semana passada, o ministro da Defesa russo, Sergei Shoigu, conversou com seu homólogo armênio, Suren Papikyan. Já o ministro da Defesa do Azerbaijão, Zakir Hasanov, teria “elevado o nível de alerta” das forças de seu país. Uma potencial nova guerra no Cáucaso, menos de dois anos depois da última e durante a guerra na Ucrânia, é certamente um cenário que a Rússia não deseja. Já as intenções turcas são mais difíceis de classificar.
Por mais que a paz seja desejável e que seja satisfatório ver um encontro de alto nível entre as delegações dos países em conflito, o ceticismo, sempre necessário, é bastante justificado nesse caso. As ações gerais dos envolvidos não permitem otimismo, mas motivam uma abordagem realista sobre as conversas. Ainda por cima, realizadas sob o espectro de uma possível nova guerra em sua cercania. Fiquemos de olho nas conversas e em quaisquer resultados, especialmente em temas humanitários, como a evacuação de civis, mas sem grandes ilusões de um fim próximo para o conflito.