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Filipe Figueiredo

Filipe Figueiredo

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Oriente Médio

Coronavírus, um novo aliado dos EUA na Síria

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Pessoas agitam bandeiras nacionais da Síria e fotos de Bashar al-Assad em manifestação contra as sanções dos EUA ao país, no centro da capital Damasco, em 11 de junho de 2020 (Foto: LOUAI BESHARA / AFP)

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A situação na guerra civil da Síria poderá sofrer uma reviravolta nos próximos dias. O conflito, iniciado em 2011, já custou cerca de 400 mil vidas e transformou quase dez milhões de pessoas em refugiadas, em outros países ou dentro da própria Síria. A catástrofe, entretanto, está equilibrada por alguns anos já, ao menos do ponto de vista militar. O apoio bélico russo foi decisivo para a manutenção de Bashar al-Assad como ditador sírio, mas os sonhos de uma pujança na reconstrução do país correm o risco de se dissolverem em meio aos novos desdobramentos.

A guerra na Síria já foi abordada diversas vezes aqui nesse espaço, então, para concisão, vamos “pular” alguns aspectos do contexto sírio e deixar apenas o convite para que o leitor leia, ou releia, esses textos por aqui. O fato é que desde a última ofensiva turca em Idlib, em outubro de 2019, não ocorria nenhum grande novo desenvolvimento na distribuição de forças do conflito. O governo Assad não controla todo o território, mas as linhas estão, basicamente, estáveis, com russos, turcos e os EUA equilibrando suas posturas entre agressivas e mantenedoras do status quo.

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Reconstrução

A esperança do regime Assad é a de que, com o congelamento do conflito, a reconstrução começasse rapidamente. A recuperação econômica seria a cereja no bolo de sua manutenção no poder, apoiada por uma nova constituição, menos centralizada. Também é o desejo de seus aliados. O Irã anseia por um terreno fértil para investimentos que não dependam das sanções dos EUA. O Hezbollah terá uma chance para expandir sua governança e a Rússia também terá possibilidades de investimentos e ainda mais influência no mercado mundial de hidrocarbonetos.

Até a China, não envolvida diretamente no conflito, também estava correndo para abocanhar contratos da reconstrução síria, um montante que especula-se começa na casa dos 250 bilhões de dólares. Isso, entretanto, começou a esfriar, o que pode finalmente ser uma ameaça para Assad como ditador. Duas questões motivam esse esfriamento. Uma delas é a pandemia do novo coronavírus. Todas as economias ao redor do mundo estão sofrendo e vão sofrer. Esse é um fato consumado, não existe dilema entre salvar vidas ou salvar a economia. As economias já estão prejudicadas.

Isso significa menos disponibilidade de recursos e de investimentos, e também menos disposição ao risco. Como o Irã vai se comprometer com a construção de uma usina na Síria se pode precisar dos recursos para a compra de insumos de saúde? O mesmo raciocínio vale para basicamente todos os países, inclusive a China. E também a própria Síria. Não há como saber com precisão o tamanho do efeito do novo coronavírus no país, tanto pelo fato do governo não controlar todo o território quanto pelo fato de não ser exatamente o Estado mais transparente do mundo.

Oficialmente, nos últimos três meses, são 177 casos confirmados e seis mortes nas áreas controladas pelo governo, cerca de dois terços do país, incluindo as maiores cidades. Ainda assim, a mortalidade de 3,4% é preocupante. Mesmo países pobres, como a Etiópia e o Paraguai, possuem mortalidades bem mais baixas. Isso mostra que a guerra síria, mesmo congelada nas linhas de frente, ainda cobra um preço social e econômico muito grande, comprometendo a capacidade de Damasco de controlar e combater a pandemia. E, novamente, restrito aos números oficiais.

Crise financeira

A outra questão é a crise econômica síria, que se agrava dia após dia. Além de decorrente de uma guerra prolongada e de sua destruição, e também do combate ao novo coronavírus, a economia síria sofre com o colapso bancário do vizinho Líbano. A Síria tem usado o sistema bancário libanês como uma ponte para o mercado internacional, contornando sanções. Para evitar um colapso total do sistema financeiro nacional, o banco central libanês impôs restrições de quantidade e limites de transações. Isso fez com a Libra síria derretesse em valor, colocando a Síria na rota da hiperinflação.

O salário médio sírio caiu de equivalente a 60 dólares por mês em fevereiro para o equivalente a 15 dólares em junho. E o buraco negro da hiperinflação, como a História brasileira mostra, é que não apenas o dinheiro vale menos, as coisas ficam mais caras. “Coisas”, no caso, não é um videogame de nova geração, mas alimentos, cujos subsídios estatais estão diminuindo. E essa situação econômica provavelmente vai se agravar. À partir do dia 17 de junho, entrará em vigor o Caesar Act do governo dos EUA, que vai punir com sanções toda e qualquer transação que envolva o Estado sírio.

A lei é nomeada com o pseudônimo do ex-fotógrafo do exército sírio que contrabandeou dezenas de milhares de imagens de torturas e execuções em prisões do regime. A fundamentação é a de que o regime, como um todo, é um violador de direitos humanos, e cortar as artérias financeiras do país. O Caesar Act, inclusive, motivou parte das decisões do sistema bancário libanês, mesmo antes de entrar em vigor. A ideia de Washington é que ela seja um golpe final no regime Assad, destruindo a economia síria para forçar uma substituição de Assad ou mais um levante popular.

Timidamente, isso já está ocorrendo. Na última semana, Assad demitiu o ministro-chefe Imad Khamis e, no último final de semana, protestos contra os preços dos alimentos ocorreram em bastiões leais ao regime. Em outras circunstâncias, o Caesar Act seria apenas mais uma peça num quebra-cabeça muito mais vasto. Afinal, mais sanções contra a Síria não vão afastar iranianos ou russos, que já são alvos de sanções de Washington. Alimentos do Irã, um grande produtor agrícola, poderiam inundar o mercado sírio, assim como investimentos russos.

Vírus

Além disso, militarmente, a Síria não é mais sequer o foco da atenção dos atores envolvidos, substituída pela destruição na Líbia, que reúne quase os mesmos atores. A pandemia do novo coronavírus, entretanto, coloca esses resgates como mais improváveis e torna a situação de Assad mais delicada. O vírus se tornou o principal aliado dos EUA contra Assad. E isso é apenas uma expressão, nada de teorias da conspiração de que seria uma arma biológica criada para destruir o regime Assad, ou criada em laboratório nos EUA e solta na China para incriminar Pequim.

Nada disso quer dizer que Assad está danado. Ele ainda controla as forças armadas, controla o território e pode usar da mesma receita que usou em 2011: sufocar protestos com força brutal. Ninguém vai conseguir desafiá-lo enquanto os céus forem dominados pela Rússia. Além disso, a Síria não é um país geograficamente isolado. Possui rotas comerciais terrestres com o Iraque, o Irã e o Líbano. E a reconstrução, timidamente, já começou. O país está implementando projetos de agricultura na estepe de Badia e construindo um anel rodoviário em Homs, pólo de refinarias de petróleo.

Hoje é virtualmente impossível colocar todas as fichas em uma das posturas mais comuns no cenário internacional. Uns, como o próprio Assad, dizem que o ditador é “incaível”. Outros, como Washington, afirmam que o regime está com os dias contados. Putin, por anos, tem uma carta na manga: mudar tudo para que tudo continue igual. Providenciar alguma saída negociada para Assad e colocar alguém do mesmo perfil, que mantenha os acordos com Moscou. Quem vai decidir quem está certo, no fim das contas, é o vírus, dependendo de como ele afetará a Síria e seus principais aliados.

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