Em cerca de um mês Israel terá um novo governo. Nos próximos trinta e poucos dias, notícias sobre corrupção, protestos pedindo a renúncia do atual Primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, debates sobre a viabilidade de coalizões, críticas de extremismo e análises sobre o declínio da esquerda trabalhista no país serão abundantes na mídia internacional e na imprensa israelense. Até lá muita coisa pode acontecer, mas três cenários possíveis já se desdobram.
A notícia mais importante dos últimos dias é certamente o indiciamento oficial de Netanyahu em três acusações de corrupção. No início do mês, o procurador-geral de Israel, Avichai Mandelblit informou ao premiê que o nomeou que pretende seguir adiante com as investigações sobre suborno, fraude e quebra de confiança; o aviso veio primeiro em uma carta de 55 páginas, posteriormente com uma nota oficial pública.
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“Bibi” Netanyahu, obviamente, nega as denúncias e apresentará sua defesa. O problema, para ele, é que o processo só será fechado após as eleições. Protestos pediram por sua renúncia, assim como seu principal adversário nas eleições, Benny Gantz, ex-comandante das Forças de Defesa de Israel (IDF, na sigla em inglês). Gantz disse que, além da renúncia ser apropriada, rejeitará qualquer coalizão com Netanyahu após as eleições.
O fortalecimento da direita religiosa?
Netanyahu endureceu suas declarações contra a esquerda israelense nos últimos anos, especialmente após a eleição de Trump. Não é diferente nesse caso. Para ele e o comunicado oficial do Likud, seu partido, o anúncio do indiciamento nas vésperas da eleição trata-se de uma conspiração ilegítima da esquerda para afetar as pesquisas e a opinião pública, eventualmente para tirar o governo de direita do poder.
Uma indefinida e amorfa “esquerda” tem sido o alvo de Netanyahu por supostamente ser o fim de Israel, uma corrente política que entregaria o país, enfraqueceria sua defesa ou permitiria que o Islã e os palestinos tomassem Israel, dentre outras demonizações eleitorais e exageros. Isso pode seduzir ouvidos radicais ou desinformados, já que a esquerda trabalhista sionista foi a que fundou o país e o governou em seus primeiros trinta anos de existência, incluindo seu auge territorial, após 1967, mas esse é outro tema.
A questão é que o Likud, o partido tradicional da direita secular israelense, tem, cada vez mais, se aproximado da direita religiosa ultraortodoxa, incluindo partidos radicais. Faz isso tanto para compensar portas que ele mesmo fechou quanto por mudanças ideológicas em seus quadros. Essa aproximação é tamanha que mesmo o American Israel Public Affairs Committee (Aipac, na sigla em inglês), principal organização pró-Israel nos EUA, criticou esses laços.
O grupo, conhecido por seu lobby no congresso dos EUA e por ser o centro de diversas teorias da conspiração antissemitas, criticou a aproximação de Netanyahu com o Otzma Yehudit (Poder Judeu), grupo considerado racista, extremista e contra “valores centrais da sociedade israelense”. O grupo é sucessor ideológico de Meir Kahane, rabino que teve um mandato no Knesset, o parlamento israelense.
Kahane defendia um governo religioso teocrático, a expulsão de todos os palestinos, a proibição do casamento entre judeus e não-judeus e a condenação da homossexualidade como crime. Praticamente um Irã de polo inverso. Kahane e seus movimentos foram banidos tanto em Israel quanto nos EUA por terrorismo. Ele foi assassinado em 1990, nos EUA, por um cidadão do país de origem egípcia.
Netanyahu, então, força a sua narrativa de que as acusações são uma conspiração da “esquerda” e anti-sionista. Advoga que é inocente até ser condenado do contrário, o que o exime da renúncia e permite que ele concorra normalmente nas eleições. Eleições essas que, até as denúncias, ele liderava nas pesquisas. Os efeitos já foram sentidos e, segundo as pesquisas mais recentes, o Likud perderá uma ou duas cadeiras de suas 30 no Knesset.
Em um cenário de coalizão frágil, com apenas 61 das 120 cadeiras do parlamento, o mínimo necessário, essa perda significará que Netanyahu, para viabilizar um governo, terá que fazer duas coisas. Primeiro, torcer para o crescimento eleitoral de seus aliados da direita nacionalista secular, da direita nacionalista religiosa e da direita ultraortodoxa; é importante relembrar que quase todos os movimentos e espectros políticos em Israel possuem duas versões, uma secular e uma religiosa.
Segundo, fazer concessões para esses grupos e conseguir formar um governo. Atualmente, Israel possui trinta ministérios ocupados por vinte e um ministros; alguns ocupam mais de uma cadeira. Quatro ministérios costumam ser os mais importantes em negociações em Israel. O da Defesa, tido como o segundo cargo mais poderoso do país e possível sucessor do governo da vez.
Os da Educação e o da Diáspora, visados pelos religiosos, especialmente pela oposição ao ensino secular de Israel. Além desses, o Ministério de Relações Exteriores, responsável pela imagem do país, por manter canais de comunicação com os EUA, com os países árabes e executar a política nacional em relação à temas como a Palestina. De fato, esse ministério é tão importante que, frequentemente, é acumulado junto com o cargo de Premiê, ou ocupado por ex-premiês ou nomes de altíssimo escalão.
Serão esses ministérios que Netanyahu terá que negociar com aliados. Atualmente, a coalizão é formada por Likud mais o centro secular Kulanu (Todos nós), o ortodoxo Shas, o ultraortodoxo Judaísmo Unido da Torá, a radical União de Partidos da Direita e a Nova Direita. O Yisrael Beiteinu, que já fez parte do governo, e o Gesher são outras possibilidades. No caso de Netanyahu, elas acabam aí, em um governo em que o Likud seria o maior partido, mas sem a maioria da coalizão.
Um governo inédito?
O outro cenário, que se tornou favorito nas pesquisas recentes, é a vitória do Kahol Lavan (Azul e Branco), fundado mês passado. Essa vitória representaria pela primeira vez na História um governo israelense que não fosse nem dos trabalhistas (em seus diversos partidos) e nem do Likud. Pode-se argumentar com os governos do Kadima, o que está factualmente correto, entretanto, o Kadima foi uma efêmera dissidência do Likud formada por Ariel Sharon, eleito pelo partido tradicional, não exatamente algo novo.
O Azul e Branco é liderado por duas figuras relativamente novas na política israelense. Benny Gantz, o citado ex-comandante da IDF, que fundou seu partido Hosen L’Yisrael (Resiliência de Israel) em dezembro. Junto com ele, Yair Lapid, jornalista autor e ex-apresentador de um talk show na televisão, que entrou na política em 2013. Fundou seu próprio partido, de posição centrista, de imediato tornou-se a segunda força no Knesset, com dezenove assentos, e ele foi brevemente Ministro das Finanças.
Aos dois nomes de fora juntou-se Moshe Ya’alon. Outro ex-comandante da IDF, Moshe foi integrante do Likud por anos, Ministro da Defesa e hoje conduz um pequeno movimento político, basicamente uma dissidência do Likud. Os três líderes fizeram um curioso arranjo. Nos primeiros dois anos do mandato, caso eleitos, Gantz será premiê, Lapid será Ministro de Relações Exteriores e Moshe será Ministro da Defesa.
Nos dois anos seguintes, Lapid que será o premiê, Gantz será o Ministro da Defesa e Moshe provavelmente será Ministro de Relações Exteriores. Uma crítica que o Azul e Branco sofre é a de falta de definição sobre suas políticas, algo remediado na noite da última quarta-feira, em um manifesto de quarenta e cinco páginas; a publicação e sua leitura, inclusive, motivaram esse texto.
O texto delineia “visões sobre temas que são de suma importância ao público israelense” e busca uma abordagem centrista das eleições israelenses. Políticas progressistas e seculares na política interna, buscando afastar as pretensões ortodoxas na política e na educação. Uma das propostas é a emenda das Leis Básicas de Israel, para garantir a igualdade civil e direitos seculares, incluindo o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo.
Israel reconhece o casamento entre pessoas do mesmo sexo, porém, o matrimônio deve ser contraído no estrangeiro, já que não existe casamento civil no país. Outra proposta apoiada no manifesto que pode soar trivial aos leitores brasileiros embora seja foco de discussão em Israel é o apoio ao transporte público em todos os dias da semana. Incluindo os Sábados, guardados de forma estrita por judeus praticantes.
Os ortodoxos são contra o funcionamento do transporte e de outras atividades aos Sábados, advogando que o Estado judeu deve seguir as leis do judaísmo. Além disso, o plano propõe uma expansão orçamentária ao sistema nacional de saúde. Em Israel, a saúde pública foi regulada em 1995 e é universal, considerada um direito legal. Já na área externa e de segurança, o manifesto propõe soluções que agradam aos setores à direita, políticas de manutenção de territórios.
O texto contém a reafirmação de uma Jerusalém una e indivisível como capital de Israel; a manutenção da presença militar israelense no Vale do Jordão; a negativa de uma repetição da retirada unilateral de Gaza em 2005, só que dessa vez da Cisjordânia, acusação feita pelo Likud, com a manutenção dos assentamentos na Cisjordânia; uma aproximação com países árabes contra “ameaças regionais”, implicitamente o Irã; que as Colinas de Golã são parte inseparável de Israel; que qualquer “decisão histórica” será submetida ao povo via referendo; finalmente, não há menção sobre um Estado da Palestina.
Nas últimas pesquisas, o Azul e Branco é o favorito, com maior número de cadeiras, estimadas entre 35 e 38; ou seja, faltariam entre 26 e 23 cadeiras para uma maioria. Com uma plataforma centrista, o partido poderia buscar tanto os partidos de centro-direita e direita liberais e seculares, como o Kulanu, quanto o partido verde Meretz ou até mesmo o trabalhista de centro-esquerda. Uma coalizão centrista e secular no governo.
Venceu mas não levou?
Uma característica do Knesset é que ele contém integrantes que seriam improváveis, para não dizer inaceitáveis, em uma coalizão. São os partidos árabes e os partidos da esquerda socialista, como o Hadash. Em menor grau, o Partido Trabalhista que, hoje, dificilmente entraria numa coalizão com o Likud. Na atual composição do Knesset, os partidos árabes possuem nove cadeiras, a esquerda socialista possui quatro e os trabalhistas contam com dezoito.
Esses números são importantes pois, primeiro, democraticamente representam parcelas da população israelense. Segundo, tornam menores as possibilidades de coalizões e arranjos parlamentares. Consequentemente, aumentam as chances do Likud ou do Azul e Branco conseguirem um bom resultado eleitoral, liderarem o Knesset como maior partido, porém, sem conseguir formar uma coalizão viável.
Esse cenário não é incomum em regimes parlamentaristas, especialmente em países com casas fragmentadas. É o que aconteceu na Espanha nos últimos anos, com quase um ano de liderança provisória de Mariano Rajoy e quatro eleições em oito anos. Na Alemanha, Merkel quase extrapolou o prazo para a formação de um governo viável, o que acarretaria em novas eleições.
Por exemplo, o Likud, com Netanyahu mantendo sua candidatura, ganha trinta cadeiras. O Azul e Branco ganha trinta e cinco cadeiras; entretanto, Gantz mantém sua promessa de não fazer uma coalizão com Netanyahu. O primeiro não consegue cadeiras suficientes na direita, o segundo não consegue cadeiras suficientes com os moderados, e um terceiro partido, como os trabalhistas, não possuem força suficiente para tentarem formar uma coalizão própria.
O resultado será a falta de resultado. Um governo provisório que convoque novas eleições, esperando acabar com o impasse. Claro, tudo isso pode mudar com uma renovação no Likud, com uma “renúncia honrosa” de Netanyahu ou um “convite para a aposentadoria” de outras lideranças. Em nome de seus “serviços ao país”, o primeiro premiê nascido em Israel e o segundo mais longevo no posto. O futuro de Netanyahu determinará o futuro de seu país.
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