Quando Nayib Bukele foi eleito presidente de El Salvador, no ano passado, ele tinha duas plataformas principais: o discurso anticorrupção e o discurso antissistema. Um ano atrás ele foi tema de uma coluna aqui nesse espaço. Na ocasião foi lembrado que ambos os discursos são meramente isso, discurso. Um de seus principais aliados políticos, Guillermo Gallegos, possui longa ficha de escândalos envolvendo dinheiro público. E difícil dizer que alguém passou um quarto de sua vida em cargos políticos, incluindo a prefeitura da capital nacional, é “antissistema”. As contradições desses discursos e a complexidade do funcionamento de uma democracia estão colocando o país numa crise, e as próximas semanas serão decisivas para sabermos se El Salvador voltará ao passado.
Um breve retrospecto dos últimos dias. Bukele convocou na quinta-feira (6) uma sessão extraordinária do Congresso para o domingo (9). Segundo ele, o movimento é amparado pela constituição. A maior parte dos deputados argumentou na direção contrária, afirmando que uma convocação extraordinária só é justificada em caso de emergência nacional. A intenção do presidente é aprovar um empréstimo do Banco Centroamericano de Integração Econômica para investimentos na polícia e na forças armadas, com a justificativa de combate ao crime organizado dentro do país. Isso também foi razão de críticas, com os deputados afirmando que não existe um plano detalhado de como o dinheiro será empenhado e as condições do empréstimo.
Executivo vs. Legislativo
Um empréstimo de 109 milhões de dólares não parece muito quando pensamos na economia brasileira ou até mesmo em algumas fortunas. No caso do país centro-americano, entretanto, representa 0,5% do PIB do país. Em proporção, é como se o governo brasileiro quisesse contrair um empréstimo emergencial de dez bilhões de dólares. Como consequência, dos 84 deputados salvadorenhos, apenas vinte compareceram à sessão extraordinária, que foi presidida pelo próprio presidente nacional; quem deveria ocupar a função seria o presidente do Congresso, Mario Ponce, não compareceu. Deputados disseram que sofreram assédio de policiais e militares para irem ao congresso, com insinuações de serem levados forçadamente.
Colocando em termos neutros, é o chefe do executivo querendo impor sua vontade ao legislativo, algo que vai contra qualquer funcionamento de Estado moderno. E a situação ainda piora. O congresso foi tomado por militares armados em apoio ao presidente, e alguns dos vinte congressistas se retiraram, acusando uma tentativa de rompimento da ordem constitucional e de quebra democrática. Importantíssimo frisar que a oposição ao movimento presidencial veio tanto da direita quanto da esquerda, dos dois principais partidos do país. Organizações como o Alto Comissariado da ONU para Direitos Humanos e a Comissão Interamericana de Direitos Humanos emitiram notas criticando a presente crise, que pode se aprofundar ainda mais.
Primeiro, ela mostra o que acontece quando um político de discurso antissistema se defronta com a democracia, especialmente em regimes presidencialistas. Ser eleito presidente não é sinônimo de ter todas suas vontades atendidas, de ter um poder executivo supremo. É para isso que servem os outros poderes numa democracia, com a população representada no Legislativo. Os deputados salvadorenhos não estão ali por algum acidente da natureza, mas pelo mesmíssimo poder do voto que elegeu Nayib Bukele. Democracia também não é a imposição da vontade da maioria, mas quando a maioria decide o caminho que deve ser seguido sem atropelar os direitos e a representação dos votos minoritários. E Bukele segue o manual de como lidar com isso.
Para ignorar os mecanismos democráticos e compensar sua falta de representatividade no congresso, ele apela para os sentimentos populares e para o tribalismo que costuma ser racionalizado via a política. Embora tenha sido eleito com a maioria dos votos, o partido de Bukele é apenas o terceiro do congresso, problema que foi apontado na coluna já citada. O seu GANA tem dez cadeiras, atrás da esquerda do FMLN com 23 e da direita do ARENA, com 37. Ele então busca jogar parte de seu eleitorado contra o congresso. “Se esses sem-vergonhas não aprovarem o plano (...) voltaremos a convocar uma sessão para o domingo. Esses sem-vergonhas não querem trabalhar para o povo. Vamos dar a eles uma semana. Se não aprovarem, não vou impedir vocês ou o artigo 87 da Constituição”.
Congresso de mentira
A referência foi feita a um trecho da constituição local que afirma “o direito popular à insurreição, para o único objetivo de restabelecer a ordem constitucional alterada pela transgressão das normas relativas à forma de governo ou ao sistema político estabelecido”. Oras, não atender um desejo do presidente, ou questionar os termos de um empréstimo internacional, é “transgredir as normas”? Existe um termo em inglês chamado rubber stamp parliament. Literalmente, “parlamento de carimbo de borracha”. A ideia de uma instituição que não tem poder real, apenas sanciona as decisões de outro poder, um verniz de legitimidade. É nisso que Bukele quer transformar o parlamento de seu país, num mero aprovador de seus desejos? Fechar o congresso é um dos primeiros passos de qualquer golpe de Estado.
O presidente ainda afirmou que “os deputados que não estão aqui estão em desacato constitucional”, acusou, sem especificar nomes, que eles negociam com gangues e que “agora está muito claro quem tem o controle da situação”, uma ameaça nem tão velada sobre seu apoio militar em relação aos representantes eleitos. Bukele, um católico descendente de palestinos, também realizou uma oração no parlamento. Ele frequentemente tenta acenar aos setores evangélicos de El Salvador, que já compõe um terço da população, quase o dobro em relação ao começo do século. Ele afirmou que conversou com Deus, que o teria pedido “paciência”. “Se quiséssemos apertar o botão, era só apertarmos, mas perguntei a Deus e Ele me disse: paciência, paciência, paciência”.
A Suprema Corte do país, posteriormente, declarou nula a sessão parlamentar extraordinária convocada pelo presidente e ordenou que Bukele não faça uso das Forças Armadas em situações não previstas pela Constituição e que “possam arriscar o governo democrático do país”. El Salvador passará por eleições legislativas daqui a um ano, quando Bukele terá a chance de ampliar seu apoio formal. Até lá ele vai pressionar e inflamar o discurso para se colocar como um salvador da pátria contra o congresso. Evitar um museu de novidades, repetindo a trajetória de quase toda a América Central, de golpes e guerras civis é essencial. Não faz trinta anos da paz em El Salvador e o fortalecimento da democracia não ocorre de um dia para o outro. É realmente necessário ter paciência.