Donald Trump anunciou que as conversas entre o governo dos EUA e o grupo afegão Talibã estão “mortas”. Ele fez isso em meio à revelação de que ocorreria um encontro em Camp David, a casa de campo da presidência dos EUA, entre ele, o atual presidente do Afeganistão, Ashraf Ghani, e lideranças do Talibã. O anúncio foi supostamente motivado pelo mais recente atentado à bomba em Cabul, na última quinta-feira (5), que deixou doze mortos, incluindo um cidadão dos EUA. De qualquer maneira, é a decisão correta.
Trump provavelmente vai ser cobrado politicamente por isso, considerando as eleições no próximo ano. Desde sua campanha anterior, uma de suas bandeiras é a diminuição da presença militar dos EUA ao redor do globo. “Bring our boys back home”, trazer nosso rapazes de volta pra casa. Trump, para evitar esse preço político, afirma que ainda pretende retirar seu país do Afeganistão, onde “eles servem mais como policiais” e que essa saída terá que ser “na hora certa”.
Pois bem, essa não é a hora certa, por dois motivos principais. E não se trata de apoiar uma presença militar indiscriminada dos EUA pelo mundo. Trata-se da mais longa guerra recente, iniciada em 2001. Em dezoito anos muita coisa mudou, a vida de cada um dos leitores mudou; viraram pais, mães, passaram por transformações pessoais, profissionais. O mundo era outro. No Afeganistão, usando a expressão popular, o “buraco é mais embaixo”. Nenhum afegão de menos de quarenta anos de idade viu um ano de paz na vida.
A História do Afeganistão independente é marcada pelas disputas, mais ou menos violentas, entre dois grupos. Os tradicionalistas, que incluem tanto lideranças islâmicas quanto as tribais, versus os reformadores seculares, sejam liberais ou socialistas. Nas últimas quatro décadas, essa disputa resultou em uma guerra civil, ampliada pela intervenção soviética e reação correspondente de outros países, seguida por outras duas guerras civis, culminando em breve Estado teocrático e totalitário nas mãos do Talibã.
Esse Estado falido foi derrubado pela intervenção da OTAN, aprovada nas Nações Unidas, em 2001. Desde então, um vagaroso e progressivo processo de reconstrução de um Estado nacional e de instituições governamentais. Os modernizadores são vistos como “fantoches” ocidentais, especialmente dos EUA, pelos seus rivais. Por sua vez, os tradicionalistas seguem como a principal autoridade em diversas regiões afegãs, distantes dos principais centros de poder e da economia, como Cabul e Herat.
O Talibã negociador
Esse cenário histórico mostra como o Afeganistão ainda está esfacelado, com feridas por cicatrizar e a necessária consolidação de um governo nacional. Deixar os afegãos à sua própria sorte seria reiniciar todo esse processo mais uma vez. E esse é o primeiro motivo principal que explica que a decisão de Trump é acertada. O Talibã nasceu no início da década de 1990, seu nome significa “estudantes” no idioma pashto, o mais falado no país. No caso, estudantes de uma madrassa tradicional islâmica.
A criação do grupo foi centrada no descontentamento com os rumos do país, em um momento controlado pelos “hereges ateus” socialistas afegãos, com apoio soviético, em outro por forças tribais centrífugas focados em tradições locais e fragmentação do poder. Os “estudantes” desejavam um governo centrado no Islã, na religião como única força política e com a submissão de todas as lideranças do país, modernizadoras ou tribais. Uma visão moralista e exclusivista de mundo.
Por esse caráter moralista e exclusivista, as lideranças talibãs se enxergam em uma luta ideal e justa. Por isso, nunca reconheceram ou aceitaram autoridades afegãs que não sejam do Talibã. Sejam socialistas, liberais, lideranças tribais ou até mesmo muçulmanos moderados. Uma das guerras civis do Afeganistão, entre 1992 e 1996, foi entre grupos extremistas religiosos e a Aliança do Norte, uma coalizão de lideranças tribais que foram aliadas dos religiosos contra os soviéticos.
Os antigos aliados se voltaram uns contra os outros. A Aliança do Norte era liderada por Ahmad Shah Massoud, principal comandante contra os soviéticos, o “Leão de Panjshir”. Um reformista modernizador, Massoud era muçulmano, mas, nas áreas sob seu comando, mulheres frequentavam a escola, a burca e casamentos forçados eram proibidos, dentre outros exemplos. Mesmo após tentativas de mediação internacional, o Talibã não reconhecia nem o Estado Islâmico do Afeganistão, nem a Aliança do Norte.
Massoud, líder da Aliança do Norte, foi morto em um atentado, dias antes do Onze de Setembro de 2001, à mando do Talibã e de Osama bin Laden. Nas atuais conversas com o governo Trump, que aconteciam no Catar, os talibãs também não reconheciam o governo Ghani. As negociações eram exclusivamente com os EUA. Certamente, na primeira oportunidade, os talibãs se voltariam contra o governo afegão, independente de qualquer acordo feito com os EUA. O Talibã não deseja, sequer tolera, um Estado-nacional.
O objetivo do grupo é uma versão própria de um proto-califado, agravado por ser em um país destruído por décadas de guerra, não em um rico emirado do Golfo Pérsico. Não se trata de um complexo de “fardo do homem branco”, uma defesa de uma tutela indefinida de Washington sobre o Afeganistão, mas reconhecer a realidade de que uma negociação deve incluir o fim do Talibã, não o seu reconhecimento como ator político legítimo. Não é como um grupo político, mesmo os por vezes considerados terroristas.
Exemplos históricos são o basco ETA ou o irlandês IRA, que possuem bandeiras políticas. Existia um objetivo político que podia ser colocado em uma mesa de negociações. Não é uma cisão religiosa também; em populações muçulmanas existem exemplos como a antiga Organização para a Libertação da Palestina. A bandeira do Talibã não permite concessões, e o grupo não as fará. No máximo, vai ganhar tempo para o seu objetivo final, o que estava fazendo com os EUA. Negociava enquanto mantinha uma série de atentados violentos.
Um campo de batalha iminente
O segundo motivo principal que embasa essa decisão é o momento geopolítico da região. O próprio Talibã é fruto de uma disputa geopolítica. A substância da criação do grupo, e sua manutenção, só foi possível com pesado apoio internacional. As madrassas onde o grupo surgiu? Financiadas pelo Paquistão e pela Arábia Saudita, em luta contra a influência soviética. O equipamento militar? Ironicamente, inicialmente veio dos EUA. E não, não é teoria da conspiração.
Na lógica da Guerra Fria, para os EUA era preferível um governo muçulmano religioso do que um governo socialista ou mesmo um secular próximo da União Soviética. Daí a clivagem do período entre seculares desenvolvimentistas, como Nasser, versus governos religiosos, como Paquistão e sauditas. Quando o Talibã chega ao poder, apenas três países reconhecem o novo governo: sauditas, paquistaneses e os Emirados Árabes Unidos. Os três financiadores e pilares políticos e ideológicos do regime.
Como explicado nos recentes textos com um pequeno guia introdutório para o Oriente Médio, o Afeganistão é, hoje, um foco de tensão, um palco de disputas entre as potências regionais. Em suma, os sauditas desejam um Afeganistão com a maior influência Talibã possível, um país centralizado em torno da maioria sunita e dos grupos próximos ao reino. Já o Irã deseja um país descentralizado, com representatividade das diversas minorias, especialmente os xiitas, em um governo heterogêneo.
Sauditas contam com o apoio do Paquistão, enquanto o Irã conta com apoio indiano. Claro que a realidade não é tão simples, com algumas contradições e interesses escusos, mas esse é um resumo apropriado em poucas linhas. E uma saída dos EUA possivelmente significaria que o Afeganistão viraria outro Iêmen, outro campo de batalha por procuração entre sauditas e iranianos, cada um com seus grupos armados. Goste-se ou não, a situação em 2019 é que uma saída dos EUA só iria piorar a situação afegã.
Qual a saída então, se a mesma coluna diz que o país não deve ser tutelado por Washington, tampouco seria produtiva uma retirada dos EUA? Primeiro, novamente, o Talibã não pode ser visto como um ator político como qualquer outro. Não é. Um acordo deve incluir sua desmobilização, não sua representação política. Segundo, manter o apoio ao governo afegão, seja político, seja militar, para criar uma estrutura institucional que resista aos testes do tempo e torne-se sólida para manter-se sozinha.
Finalmente, não acreditar que essa necessidade de apoio torna legítima uma redução do Afeganistão ao nível de “vassalo” ou algo do tipo. O Afeganistão deve poder contar com os EUA, mas não apenas com Washington. Relações com países da região, incluindo aí potências como China e Rússia, podem ser muito benéficas para o Afeganistão. Se é a posição geográfica do país que explica ele ser um “cemitério de impérios” na História, essa mesma posição pode viabilizar relações e riquezas que solucionem seus problemas.
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