Ismail Haniyeh, em 2006, eleito primeiro ministro da Autoridade Palestina.| Foto: Governo da Rússia/Creative Commons
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Ontem, segunda-feira, dia onze de novembro, o senador Jaques Wagner, do PT da Bahia, afirmou que "não podemos confundir os palestinos com o Hamas". O líder governista no Senado, que é judeu, deu a declaração durante uma homenagem aos reféns do Hamas, que contou com a presença de autoridades e de familiares de Michel Nisenbaum, brasileiro-israelense sob cativeiro do Hamas. Essa declaração contrasta com as alegações de integrantes do governo israelense e merece um olhar atento.

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Talvez o exemplo mais notável tenha sido o do presidente de Israel no dia 13 de outubro. Na ocasião, Isaac Herzog afirmou que “uma nação inteira que é responsável” pelos ataques terroristas da semana anterior. “Não é verdade esta retórica sobre os civis não estarem conscientes, não estarem envolvidos. Não é absolutamente verdade.”. Dias antes, o então ministro, Amichai Eliyahu, afirmou que “não existe isso de civis não envolvidos em Gaza” e, na mesma entrevista, sugeriu o uso de uma bomba nuclear em Gaza.

Por essas declarações, Eliyahu foi afastado pelo primeiro-ministro Benjamin Netanyahu na ocasião. O discurso que faz uma associação automática e integral entre o povo palestino e o Hamas é bastante problemático, por vários motivos. Um deles, o mais óbvio, é que abre margem para a falta de distinção entre alvos combatentes e alvos civis, o que configura um crime de guerra. Essa eventual violência indiscriminada pode se intensificar e tornar-se algo ainda pior.

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Por exemplo, o ministro da Defesa de Israel, Yoav Gallant, afirmou que “todas as pessoas que apoiam o Hamas deveriam morrer”. Não é difícil de imaginar que uma pessoa possa associar as duas coisas: não existem civis inocentes em Gaza, todos que apoiam o Hamas deveriam morrer, logo, todos os habitantes da Faixa de Gaza deveriam morrer. Mesmo que somente uma pessoa pense isso, já está aberta uma porta muito perigosa, a da desumanização.

Um componente importante dessas declarações é o trauma e a carga emocional depois dos atos terroristas, o que é compreensível. Os atos de violência foram hediondos e chocam qualquer um. Ao mesmo tempo, entretanto, lideranças políticas não podem deixar o emocional tomar conta de suas falas, pois elas não são mera expressão pessoal, mas também são a expressão de seus cargos. Yoav Gallant, o indivíduo, o marido, o pai, pode pensar “todas as pessoas que apoiam o Hamas deveriam morrer”. O ministro, não.

Tamanho do Hamas e eleições

De qualquer maneira, é possível dizer que toda a população da Faixa de Gaza pré-guerra apoiava o Hamas? O primeiro argumento contra isso é o formal. Segundo as estimativas dos EUA, em 2022 o Hamas tinha entre 20 e 25 mil integrantes. Já para as forças armadas de Israel, em 2021, o grupo tinha cerca de 40 mil integrantes, somando o partido e seu braço armado, as Brigadas al-Qassam.

Mesmo que queiramos considerar essas estimativas totalmente fora da realidade e, por exemplo, dobrar esses números, ainda trata-se de uma fração da população total de 2,3 milhões de pessoas da Faixa de Gaza, um dos locais mais densamente povoados do mundo. Claro que esse é um argumento formal, ou seja, de integrantes formais do grupo. Muitas pessoas vão dizer que a “prova” de que população de Gaza é simpatizante ao Hamas é o fato do partido ter vencido ali as eleições de 2006.

Entramos no segundo argumento: essa vitória eleitoral não quer dizer apoio geral ao Hamas, muito menos hoje. É pueril como dizer que o fato de Lula ter vencido as eleições presidenciais brasileiras faz da população inteira uma simpatizante do Partido dos Trabalhadores. No total nacional, o Hamas teve 44,45% dos votos, o Fatah teve 41,43% e outras chapas e candidatos independentes tiveram 14,12% dos votos. O comparecimento eleitoral foi de 76% do eleitorado.

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Ou seja, foi uma eleição apertada em que o Hamas não teve a maioria dos votos. Olhando o mapa oficial dos resultados, vemos que, dos cinco distritos da Faixa de Gaza, o Hamas não teve a maioria dos votos em três deles. No distrito da cidade de Gaza, onde teve sua mais expressiva vitória, o partido teve cerca de 57% dos votos. A ideia de que o Hamas teve uma vitória esmagadora vem do fato do grupo ter tido menos candidatos, concentrando seus votos e elegendo mais deputados.

Em dois dos distritos de Gaza onde o Hamas teve menos votos que o Fatah, por exemplo, ainda assim o Hamas elegeu mais deputados. Quem acompanha nosso espaço de política internacional sabe que as eleições têm essas distorções e o parlamentarismo por vezes proporciona o “ganhou, mas não levou”. Finalmente, por uma série de razões, 70% da população da Faixa de Gaza pré-guerra tinha menos de trinta anos de idade. Ou seja, não tinha idade para votar em 2006.

Visões sobre o Hamas

Em suma, a eleição de 2006 não diz muito sobre o apoio ou não ao Hamas da população civil de Gaza. Então, como saber o que a atual população de Gaza pensa do Hamas? Novamente, em dados pré-guerra, podemos citar dois think tanks. Um deles é o Palestinian Center for Policy and Survey Research, baseado em Ramallah, que publica o Arab Barometer, financiado em parte com contribuições do governo dos EUA.

Em pesquisa realizada entre 28 de setembro e 8 de outubro, e publicada no dia 23 de outubro, apenas 29% da população de Gaza afirmou que “confia” ou “confia bastante” no Hamas, com 44% dizendo que “não confiam”. Importante dizer que a confiança no Fatah também é baixa, mas Marwan Barghouti, líder do Fatah atualmente preso em Israel, seria o mais bem votado em Gaza. Em outra pesquisa da mesma fonte, 51% da população de Gaza disse apoiar a luta armada, sem especificar sob qual liderança ou quais moldes.

Outra pesquisa, feita em julho e publicada recentemente pelo The Washington Institute for Near East Policy, um think tank pró-Israel dos EUA, afirma que, da população de Gaza, 62% eram favoráveis à continuidade do cessar-fogo, 50% afirmavam que o Hamas deveria moderar suas visões, 40% afirmou ter visão negativa do grupo e 70% afirmou preferir a administração pela secular Autoridade Nacional Palestina do que pelo Hamas.

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Finalmente, no último dia 14 de novembro, foi realizada uma pesquisa pelo Arab World for Research and Development, que é, em bom português, o instituto de pesquisa do próprio Hamas, financiado pelo Catar. A pergunta feita foi “Até que ponto você apoia a operação militar levada a cabo pela resistência palestina liderada pelo Hamas em 7 de outubro?”. A própria grafia da pergunta mostra o viés do questionário, já que foi longe de ser uma mera “operação militar”.

Da população de Gaza consultada, 63,6% disse “apoiar bastante” ou “apoiar”. Outros 14,4% disseram não apoiar e nem se opor, 8,3% disse não apoiar e 12,6% disse ser extremamente contra. 1,1% não respondeu. Já na visão sobre o Hamas, 28,9% dos habitantes de Gaza disse ter visão bastante positiva, 30,7% um pouco positiva, 16,6% um pouco negativa e 22,7% disse ter visão bastante negativa do Hamas. A simpatia ao Hamas é bem maior na Cisjordânia, onde o grupo não governa, do que na Faixa de Gaza.

Finalmente, 68,2% dos habitantes de Gaza responderam desejar um governo de unidade nacional e apenas 7,6% respondeu desejar um governo do Hamas. O que todos esses números dessas três pesquisas mostram é que, mesmo com a catarse emocional causada pela violência, o Hamas não era e não é uma unanimidade na Faixa de Gaza, pelo contrário. Especialmente sua ala política e seu governo.

A triste realidade é que muitos palestinos são também vítimas e reféns do Hamas, um grupo jihadista que não nasceu com o propósito de construir um governo. Não é possível dizer que não existem “civis não envolvidos” em Gaza, como disse o presidente israelense e como pensam muitos. Isso é reducionista e, repete-se, contribui para justificar crimes de guerra e punições coletivas, com o processo de desumanização dos palestinos. Esse processo, no longo prazo, como disse o secretário de Defesa dos EUA, Lloyd Austin, levaria Israel a conquistar uma vitória tática, mas uma derrota estratégica.