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A Coreia do Sul realizou suas eleições legislativas nessa semana, mesmo sendo um dos primeiros países afetados pelo novo coronavírus. Enquanto mais de quarenta eleições já foram adiadas pelo mundo por causa da pandemia, os sul-coreanos compareceram às urnas para eleger os trezentos deputados da Assembleia Nacional, o legislativo unicameral do país. E o que se viu certamente abriu um grande sorriso no rosto do presidente Moon Jae-in, do Partido Democrático, de centro-esquerda.
Foi a primeira eleição realizada após a proposta do governo para mudar as regras dos assentos proporcionais, permitindo que lideranças regionais ou partidos menores tenham mais chances de representação. Dos 300 assentos, 253 são eleitos de forma distrital, elegendo candidato mais votado de cada distrito. Os outros 47 são distribuídos de maneira compensatória para listas partidárias. Isso de fato permitiu a entrada de dois novos partidos na casa, mas também motivou uma “manobra” eleitoral dos grandes partidos.
Jeitinho eleitoral
Tanto o Partido Democrático quanto o conservador Futuro Unido criaram “partidos satélites” menores, para competir nas listas compensatórias. E o próprio Futuro Unido é fruto de uma maquiagem eleitoral. Trata-se de uma fusão de partidos de direita com um novo nome, oficialmente encerrando o Partido da Liberdade, fundado na década de 1990 e que elegeu dois presidentes. Uma delas foi Park Geun-hye, retirada por impeachment após um escândalo (surreal, diga-se) de corrupção. Nova marca, menos rejeição.
No final das contas, o Partido Democrático do presidente ficou com 180 cadeiras, maioria confortável, aumentando em 52 seu tamanho no congresso. Os conservadores ficaram com 103 cadeiras, perdendo nove, o pior resultado da direita sul-coreana, em todas suas versões, desde a redemocratização. Curiosamente, os conservadores tiveram mais votos individuais, cerca de 130 mil a mais. Isso explica sua vitória na lista proporcional, mas seus candidatos foram derrotados em seus distritos, então, diminuíram.
Completam a casa três outros partidos, dois deles novos, como já mencionado, e mais cinco deputados independentes. Uma coalizão de centro de partidos pequenos foi varrida da casa, perdendo todos seus vinte assentos. O primeiro sorriso no rosto do presidente, então, é explicado por sua vitória. Até maio de 2022, Moon Jae-in terá um congresso favorável. Como não há reeleição no país, existe o risco do partido cair em luta fratricida pela sucessão. Se o presidente conseguir evitar isso, voará em céus de brigadeiro.
Alguns outros aspectos podem ser analisados ou aprendidos com essa eleição. Um deles é outro provável motivo de sorriso para o presidente, a presença eleitoral. Cerca de 66% do eleitorado votou, a maior proporção em uma eleição legislativa desde 1992. O simples fato de que 29 milhões de pessoas saíram para votar mostra como as políticas do país ao lidar com o coronavírus foram bem sucedidas. Talvez mais do que o fato de seu partido ter sido o vitorioso, já que, novamente, não foi o mais votado.
Eleição durante a pandemia
O explica esse sucesso sul-coreano? Primeiro, como o país sofreu com outras doenças respiratórias anteriores, como a SARS e a MERS, ele possui infraestrutura e expertise para lidar com um caso como esse; embora, é claro, o contágio do novo coronavírus seja de maiores proporções. Pessoal médico treinado, um sistema de saúde amplo, com investimentos tanto públicos quanto privados, e capacidade científica e laboratorial. Talvez o melhor exemplo disso seja em relação aos testes da nova doença.
Enquanto o Brasil contava com apenas três centros de excelência para testes desse tipo antes da pandemia, os institutos Adolfo Lutz e Butantan e a Fiocruz, e precisa importar grande parte dos insumos, a Coreia do Sul fabrica esses insumos e consegue processar mais testes em maior velocidade. Claro que, atualmente, o Brasil está se adaptando e começando a preencher esse vácuo. Ainda assim, hoje, o Brasil processa sete mil testes por dia. A Coreia do Sul chegou ao número de vinte mil por dia.
Somando-se ao fato de que é uma população de cinquenta milhões de pessoas, um quarto da brasileira, a Coreia do Sul conseguiu estabelecer protocolos que permitiram combater a pandemia e manter a sociedade funcionando com certa normalidade. Os testes em massa foram essenciais para isso. Enquanto estamos no escuro, a Coreia do Sul realizava testes em drive thru e cabines similares às antigas cabines telefônicas. A rapidez da realização desses testes em massa também foi um aspecto importante.
Cada pessoa infectada era enviada para tratamento e toda pessoa que esteve em contato com o paciente era colocada em isolamento e monitorada. Os pacientes eram triados de acordo com a gravidade do caso e demografia; depois, enviados para centros de tratamento específicos, sem misturar casos mais graves ou preocupantes com casos mais leves. Por duas semanas as escolas e universidades pararam, junto com algumas fábricas. Tudo de forma simultânea, para aumentar a eficácia da política de testes em massa.
Viagens, shows e eventos foram cancelados no período. Além dessas medidas, o governo anunciou “guerra à pandemia” junto de um pacote econômico de 30 trilhões de won, algo na casa de 124 bilhões de reais, para o combate ao vírus e aos seus efeitos socioeconômicos. Em suma, do fim de fevereiro até meados de março, a Coreia do Sul realizou uma política concertada de contenção do vírus que permitiu que, após três semanas, o país retomasse quase a vida normal.
Dentre os índices mundiais, a Coreia do Sul é, proporcionalmente, dos países com mais testes e com menos mortos, ainda mais se considerarmos que o topo dos países que mais testam sempre será ocupado pelos países de reduzida população; como curiosidade, a região que mais testou sua população, proporcionalmente, é a das Ilhas Faroe, com pouco menos de seis mil testes. Realizar uma eleição com um enorme eleitorado presente é, por si só, uma vitória, e a aprovação do presidente só subiu na atual crise.
Coreia do Norte
Outro aspecto sempre importante e presente nas eleições da Coreia do Sul é a relação do país com seus irmãos norte-coreanos. O tema já esteve bastante presente aqui nesse espaço, desde o início da coluna. Um dos “eixos” da clivagem partidária e ideológica na Coreia do Sul gira em torno da abordagem mais apropriada nessa relação. Mais à direita, gradativamente, estão desde os “céticos” com a relação, que defendem apenas uma postura mais firme, até os mais radicais nacionalistas sul-coreanos.
Nesse extremo estão os que acreditam que uma reunificação não é mais possível, que a Coreia do Sul já se tornou uma nação separada. Ou, ainda, que a reunificação deve ser realizada sob total primazia do sul, com eventual uso da força. Mais à esquerda estão desde os que favorecem a cooperação até os nacionalistas pan-coreanos, que defendem uma reunificação pacífica. É o caso do atual presidente, filho de refugiados do norte, cuja situação já foi abordada mais de uma vez aqui.
Alguns interpretaram o sucesso eleitoral do presidente como aprovação da sua política com a Coreia do Norte, marcada por sua visita ao norte. Não necessariamente é o caso. O mapa eleitoral da Coreia do Sul permaneceu igual; a centro-esquerda vencedora na costa ocidental e na enorme região metropolitana de Seul, e os conservadores vencedores na costa oriental, em Pusan, último reduto da guerra de 1950, e em Daegu, lugar de origem da família Park, tanto a ex-presidente quanto seu pai, o ex-ditador Park Chung-hee.
Ou seja, os eleitores apenas continuaram tendências que já existiam antes da presidência Moon, não foram afetados pelas recentes cúpulas e lançamentos de mísseis pela Coreia do Norte. Quem já votava pelo diálogo continuou, e quem já votava contra esse mesmo diálogo também não mudou de ideia. A ligação entre as eleições e as relações inter-coreanas não está nos eventos que precedem, mas, possivelmente, nos eventos após a eleição. A maioria parlamentar pode incentivar mais uma investida de Moon nas relações com o norte, ou dar estofo à algo ainda mais ambicioso.
Como curiosidade, agora ele enfrentará um adversário de peso no congresso, o deputado Thae Young-ho. Ex-diplomata da Coreia do Norte, ele tornou-se o primeiro asilado do norte eleito para a Assembleia Nacional. Dois detalhes. A Coreia do Sul considera qualquer pessoa de origem coreana como um cidadão, já que os coreanos constituem uma só nação. O segundo é que parte da imprensa usa o termo “desertor” para casos como esse, o que não é o mais apropriado.
Como asilado da Coreia do Norte e feroz crítico da ditadura de Kim Jong-un, Thae Young-ho foi eleito pela coalizão conservadora. Se um deputado será contra uma aproximação maior entre as duas repúblicas coreanas, será Thae. Curiosamente, ele foi eleito pelo distrito mais elitista da Coreia do Sul, o de Gangnam, em Seul, o mesmo satirizado pela música Gangnam Style que reverberou pelo mundo em 2012. Mais um aspecto que coloca essa eleição como histórica para o país.