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No final de semana, o verniz de democracia que tingia Mianmar foi desfeito e os militares do país retomaram o poder que nunca deixaram de ter. Durante o golpe de Estado, a Conselheira Aung San Suu Kyi, na prática líder do governo do país e laureada com o Nobel da Paz em 1991, foi presa, assim como a maioria dos parlamentares e integrantes de seu partido, a Liga Nacional pela Democracia. Por mais infeliz que seja o cenário, ele não é surpreendente e, mais que isso, é uma consequência das contradições de Aung San Suu Kyi como mandatária nacional.
Mianmar, a antiga Birmânia, termo que é a origem do atual gentílico do país, foi fundado como um Estado contemporâneo em 1948, após a Segunda Guerra Mundial. Durante o conflito, eram ali que se enfrentavam britânicos e japoneses, que pretendiam invadir a Índia. De janeiro de 1942 até julho de 1945, cerca de meio milhão de pessoas perderam a vida ali, a maioria civis. Algumas estimativas colocam o número de mortos em até um milhão. Esse teatro de guerra tornou-se célebre pelo filme A Ponte do Rio Kwai, que retrata o uso de prisioneiros aliados em trabalhos forçados sob condições brutais pelos japoneses para a construção de uma ferrovia.
O país que hoje possui uma população de cerca de cinquenta milhões de habitantes inclui oito macro grupos étnicos. O maior deles, representando cerca de dois terços da população, é o dos bamar, nome que origina o gentílico do país e o nome Birmânia. Os shan, “primos” dos tailandeses, fazendo uma vulgarização, são o segundo maior grupo. No total, são mais de 130 identidades étnicas variadas, agrupadas nos troncos principais citados. As tensões étnicas fazem com que o país esteja em guerra civil praticamente desde a independência, com uma miríade de grupos armados.
Inicialmente, as pautas dos grupos eram autonomia, uma federalização ou até mesmo a independência da sua região. O conflito já deixou mais de duzentos mil mortos e forçou o deslocamento de mais de um milhão de pessoas. A guerra interna foi usada como justificativa para uma violenta ditadura militar que governou de 1962 a 2011, sob o pretexto de manter a unidade nacional. O governo progressivamente centralizou e nacionalizou sua economia. Como em qualquer ditadura, a corrupção correu solta e os militares eram os senhores de suas regiões ou instituições.
Tráfico de drogas
Pobreza e contrabando tornaram-se as marcas da economia nacional e outro elemento entra em cena, o tráfico de drogas. O ópio e a papoula já estavam presentes na região desde o século XVIII, mas, a partir da década de 1950, o cultivo da planta e a produção de opiáceos tornaram-se as principais atividades econômicas do país. Em 1949, com a consolidação comunista na China, a produção e o uso de ópio foram duramente reprimidos, vistos como símbolos da decadência da China imperial e da interferência britânica.
A produção de ópio foi deslocada para o sudeste asiático pelas forças nacionalistas do Kuomintang, que usavam a droga como moeda para a aquisição de armas. Os grupos armados forçavam a expansão do cultivo de papoula pelos camponeses locais. É o nascimento do chamado Triângulo Dourado, formado por Mianmar, Tailândia e Laos, um dos principais centros de produção e de distribuição de opiáceos do mundo. Agora, os militares e os grupos armados não lutavam mais por modelos de economia ou de Estado, mas pelo controle da produção e do tráfico de drogas.
Por volta de 1990, metade dos opiáceos, como heroína e metanfetaminas, produzidos no mundo eram originados em Mianmar. As drogas iam do país para a vizinha Tailândia por terra e, de lá, eram distribuídas pelo mundo por via marítima. O tráfico enriqueceu líderes de quadrilhas, chefes de milícias e comandantes militares, enquanto submeteu camponeses à pobreza e à extorsão. O ano de 1990 não foi utilizado como marco temporal à toa. Ele marca o que deveria ser uma transformação na sociedade birmanesa, após os protestos da Geração 8888, de Oito de Agosto de 1988.
Os protestos, motivados pelo cenário econômico e criminal, são violentamente reprimidos, matando milhares de pessoas. Os militares, entretanto, se veem acuados pela pressão internacional. Além de sofrerem sanções econômicas ocidentais, que transformaram a China no maior fornecedor de armas para Mianmar, tratava-se do fim da Guerra Fria, quando ventos de mudança sopravam pelo mundo. O país muda de nome para União de Mianmar e são organizadas eleições em 1990, vencidas pela principal líder dos protestos, a citada Aung San Suu Kyi. Os militares, conhecidos pelo nome em birmanês, Tatmadaw, entretanto, não aceitam os resultados das eleições.
Suposta democratização
A ativista é presa e a democratização e abertura do país serão retomadas apenas nos anos 2000, com outro levante contra o governo, a Revolução de Açafrão, em 2007, liderada por monges budistas, que levou a uma nova constituição e eleições. Em 2016, Aung San Suu Kyi tornou-se Conselheira de Estado. Legalmente, ela não poderia ser primeira-ministra ou presidente, pelo fato de seus filhos possuírem dupla nacionalidade, então foi criado um cargo para acomodar a líder pela democracia no país. Pela primeira vez desde 1962, foi eleito um presidente civil.
A democratização, entretanto, era superficial. A constituição de 2008 teve seções redigidas pelos militares e ela reserva um quarto dos assentos no Parlamento aos militares, além do controle de três ministérios e um dos vice-presidentes. Também determina que militares não podem ser investigados pelo judiciário de maneira independente, incluindo em crimes como corrupção. De 2008 a 2018, apenas um oficial militar foi condenado por corrupção, por aceitar subornos de contrabandistas de jade, e a pena foi uma mera transferência de posto.
Parte do orçamento das forças armadas não é supervisionada pelo poder civil, com algumas das principais empresas e agências do país sendo propriedade do exército, como a Myanmar Economic Corporation e a Myanmar Economic Holdings Limited. O fato é que Mianmar não passou por uma democratização, os militares apenas deixaram os holofotes, mas continuaram tutelando o poder civil, sem supervisão. Nesse processo, ocorre a perseguição dos rohingya pelas forças do Estado, uma política acusada de ser genocida.
Os rohingya compõem uma população de origem bengali, levada para a então Birmânia pelos ingleses, para servirem de mão-de-obra barata na construção de ferrovias. São muçulmanos em sua maioria e, até 2015, havia cerca de um milhão de rohingya no país. De acordo com as leis de Mianmar, essas pessoas não têm sequer nacionalidade, são consideradas estrangeiros irregulares. Não podem frequentar escolas e não possuem documentos. A questão é que essas pessoas já estavam ali quando o atual Estado foi fundado.
Em 2016, milícias lideradas por monges budistas começaram a expulsar essas pessoas de suas vilas, incendiando suas casas. Com o aumento das tensões e a participação dos militares, mais de vinte mil pessoas foram mortas, mais de quinze mil mulheres e meninas foram violentadas e cerca de novecentos mil buscaram refúgio em Bangladesh. A crise humanitária mostrou que a violência ainda era uma ferramenta de Estado no país e que as forças armadas, apoiadas por milícias locais, não estavam submetidas a nenhum mecanismo de controle.
Nesse processo, Aung San Suu Kyi decidiu jogar sua reputação pela janela e tornou-se a voz internacional de defesa dos atos de violência, descritos como “relatos exagerados”, e manteve a postura de negar a possibilidade que os rohingya fossem reconhecidos como cidadãos. Ela também não se pronunciou sobre a prisão de jornalistas estrangeiros cobrindo os eventos. Diversos prêmios e reconhecimentos foram retirados, além de uma enorme pressão para a cassação de seu prêmio Nobel.
Descartável
Ao fazer isso, ela tornou-se mera porta-voz dos militares que a prenderam por duas décadas. No lugar de pressionar por maior democratização e abertura política, ela mostrou fraqueza perante o mundo e perante os próprios militares. Talvez tenha feito isso para manter prestígio perante a população, ou executar uma função de estadista, defendendo o estamento e os símbolos nacionais. É claro que forças armadas fazem parte de um Estado moderno, inclusive das democracias, e devem ser defendidas, mas não de genocídio, não à qualquer custo. E não num governo autoritário.
Segundo o Democracy Index, da revista britânica liberal The Economist, Mianmar é um regime autoritário, na 122ª posição de 167 países. Isso mesmo antes do golpe de dias atrás. Se Aung San Suu Kyi desejava ganhar simpatia popular ao apoiar a violência contra os rohingya, a tática funcionou. Nas eleições de novembro, ela e seu partido conquistaram 83% dos assentos parlamentares em disputa, enquanto os militares levaram 7%, excluídos os assentos já garantidos pela constituição.
Se deu certo como estratégia eleitoral, deu errado como demonstração de fraqueza. Se ela agiu como mera porta-voz tutelada, qual o custo de removê-la? Quase nulo. O Tatmadaw, repetindo o ocorrido em 1990, não reconheceu o resultado eleitoral, acusou de fraudes, sem apresentar nenhuma prova, prendeu os principais líderes políticos e declarou Estado de emergência por um ano, sem a autoridade para fazê-lo.
O general Min Aung Hlaing, comandante das forças armadas nos últimos dez anos, tornou-se o mandatário do país. Por seu envolvimento na violência contra os rohingya, o general estava sob sanções dos EUA e da União Europeia. Formado durante o período ditatorial do país, ele possui um patrimônio considerável e alguns de seus filhos já receberam alguma benesse do Estado, sempre acompanhadas de verniz de legalidade.
Internacionalmente, o golpe provavelmente aproxima Mianmar mais da China do que do ocidente. Isso pode ser verificado nos diferentes tons adotados nas notas diplomáticas. Enquanto Washington condenou com palavras fortes o que chamou de golpe, Pequim preferiu priorizar a “estabilidade” para solucionar uma crise interna. Considerando que Mianmar possui um solo abundante em riquezas, com gás natural, pedras preciosas e 70% da produção mundial de jade, além de uma relação estratégica com a China, isso não seria totalmente estranho.
Ainda assim, não se pode esquecer o papel que Aung San Suu Kyi teve no contexto político de seu país. De prisioneira política e símbolo de democracia, ela tornou-se líder de um promissor processo de abertura e reforma nacional. Acomodada, virou porta-voz da legitimação da violência cometida pelos mesmos algozes que a prenderam. Desse papel, tornou-se impotente e um mero peão descartável no tabuleiro. Até o momento em que foi, de fato, descartada e novamente presa.