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Em um episódio que deveria ter tido mais repercussão, um homem foi executado mês passado por um crime que cometeu quase meio século atrás. Abdul Majed foi um oficial no exército de Bangladesh até 1980, quando se transferiu para a administração civil do país, onde trabalhou até 1997, quando tornou-se foragido. Preso no dia sete de abril, foi enforcado cinco dias depois, por um crime cometido em 1975. Um assassinato que ilustra bem um emaranhado de forças políticas e familiares.
O pequeno Bangladesh é um país com um contexto quase único. É um dos poucos casos de um país que ficou independente de outro país e com ambos tendo sido colônias; no caso, independente do Paquistão em 1971, por sua vez independente dos britânicos em 1947. É apenas o 92º maior país do mundo, mas com a oitava maior população, 160 milhões de habitantes, fazendo dele o país mais densamente povoado do mundo, excluídos os micro-Estados como Mônaco e países insulares.
Também é um país marcado pela pobreza, mesmo sendo uma das quarenta maiores economia do mundo; em números brutos, sua economia é maior do que a de países como Chile e Croácia. Dividida por número de habitantes, a economia de Bangladesh vai para as quarenta piores. Outra questão é que Bangladesh é um dos Estados com população mais homogênea do mundo. Mais de 95% da população é da mesma etnia, a bengali, e cerca de 90% da população é muçulmana.
Paquistão Oriental
Esse é um dos motivos que explicam a independência do país. A partição do antigo Raj britânico em dois países soberanos foi, em alguns aspectos, um sucesso. Em outros, um desastre. Infelizmente, provavelmente mais desastres do que sucessos. Na partição foram criados os atuais Estados da Índia e do Paquistão, dividido em duas partes, mas um mesmo país. A região ocidental correspondia ao atual Paquistão, com população punjabi e pashtun. O Paquistão Oriental era a província que hoje é Bangladesh.
Ou seja, criou-se um Estado que, além de ser não-contínuo, tinha seu principal inimigo no meio. E com duas regiões totalmente distintas etnicamente e culturalmente. Para piorar, a capital era em Karachi, no atual Paquistão. A população bengali ficava distante do centro de poder e, progressivamente, era discriminada na estrutura do Estado paquistanês. O único critério para a partilha foi o religioso, muçulmanos de um lado, hindus de outro; não que tenha tido resultado, já que a minoria muçulmana indiana é de 200 milhões de pessoas.
Apenas um chefe de governo paquistanês foi de origem bengali em vinte e quatro anos, mesmo sendo cerca de 40% da população. Nos governos militares paquistaneses a discriminação era ainda maior, já que a região do Paquistão ocidental, como fronteira do império britânico, tinha um forte sentimento de ser uma elite militar, bem formada e com histórico de combate, ao contrário dos bengalis, vistos muito mais como indisciplinados e proeminentes à “traição”, já que também existem bengalis na Índia.
Esse contexto foi o caldeirão onde se formou um desejo por autonomia e, posteriormente, por independência. Um de seus principais líderes foi Sheikh Mujibur Rahman; no caso do subcontinente indiano, “Sheikh” não é mesmo que o xeique árabe, um título distinção, mas é um prenome que indica uma casta. Conhecido como Sheikh Mujib, ele liderava a Liga Awami, o principal partido bengali que primeiro lutou pela autonomia e, depois, pela independência total.
Independência
A independência veio em 1971, com uma guerra sangrenta. Os bengalis contaram com o apoio indiano, interessados em enfraquecer seu rival paquistanês. A guerra custou ao menos 400 mil mortos em menos de nove meses, a maioria deles bengali, incluindo aí o massacre de dezenas de milhares de “traidores” pelo exército paquistanês, algo denunciado como um genocídio por muitas pessoas e os eventos são encarados dessa forma pela sociedade atual do país.
O fluxo de refugiados da guerra motivou o primeiro grande concerto beneficente, o The Concert for Bangladesh, organizado pelo ex-Beatle (se é que isso existe) George Harrison. Junto com ele estava o músico Ravi Shankar que, embora fosse de nacionalidade indiana, é da etnia bengali. Nas palavras dele, “subitamente, todo o mundo conhecia o nome Bangladesh”, o novo nome do país, que significa justamente “Terra dos bengali” ou “Terra de Bengala”.
Reza a lenda que era da madeira da cana-do-reino de Bengala eram feitos os melhores bastões de cavalheiros do Rio de Janeiro do século XIX, daí o termo “bengala” como substantivo para o objeto que serve de apoio. Etimologia de lado, a independência não foi o suficiente para assentar a poeira. Agora as antigas facções bengalis lutavam pelo protagonismo dentro do país. Um desses grupos era o mais radical da independência, que via em Sheikh Mujib alguém que fez concessões demais aos indianos.
Assassinato e execuções
Em 1975, após quatro anos de governo, ele e a maior parte de sua família foram mortos de madrugada por um grupo de oficiais do exército. O governo dos EUA comprovadamente apoiou o golpe, temendo uma ascensão socialista no país. Outros líderes da Liga Awami foram presos e executados meses depois. Bangladesh mergulhou em crise e passou os próximos anos envolto em golpes entre os próprios militares e lei marcial. Os responsáveis pelo assassinato foram perdoados pelo governo de então.
Duas das filhas de Sheikh Mujib, entretanto, estavam estudando na Alemanha, e sobreviveram. Viveram asiladas na Índia até retornarem ao seu país. A mais velha, Sheikh Hasina, tornou-se líder da oposição e, em 1996, foi eleita premiê do país. Não por coincidência que Abdul Majed tornou-se um foragido em 1997, assim como outros envolvidos no assassinato. O perdão, obviamente ilegal e imoral, dado aos assassinos foi revertido no parlamento e os envolvidos foram julgados em 1998.
Esgotadas as apelações, cinco ex-militares foram enforcados em 2010, sob forte aparato de segurança, já que ocorreram protestos de alas nacionalistas simpáticas aos golpistas. Outros foram inocentados, quatro morreram na prisão ou foragidos, outros ainda são procurados. Depois de mais de duas décadas escondido na Índia, Abdul Majed foi preso em Daca, capital de Bangladesh. O que o motivou a voltar? Não se sabe. Uma coisa chama a atenção, entretanto.
Entre a prisão e a execução de alguns de seus comparsas, se passaram doze anos. No caso de Abdul Majed, foram cinco dias. Claro, ele já havia sido julgado e todas as apelações se esgotado. Ainda assim, é notável. Talvez, em um caso de menor sensibilidade, não fosse assim, o que permite uma reflexão. Sheikh Hasina é, sem dúvida, uma líder popular. Após sua eleição em 1996, ela cumpriu seu mandato até 2001; a primeira vez que alguém terminou seu mandato na História do país.
Foi eleita novamente em 2009 e permanece no poder desde então. Seu governo teve que enfrentar crises enormes, como a do genocídio rohingya no vizinho Myanmar, mas também é criticado por um crescente autoritarismo e perseguição aos opositores. Uma execução às pressas, mesmo de alguém condenado por um crime violento e cometido por razões políticas, não é um bom sinal para país algum, ainda mais comparado com a duração dos procedimentos jurídicos anteriores. De qualquer maneira, quem sabe, foi o início de um ponto final num sombrio evento cujas cicatrizes ainda são sentidas no pequeno Bangladesh.