O presidente turco novamente usa a vida de milhões de pessoas como moeda de barganha. Recep Erdogan apresentou um complicado plano de realocamento de refugiados sírios na semana passada, perante a Assembleia Geral das Nações Unidas (ONU). O plano, numa primeira vista, pode fazer sentido ou ser justificável. Um olhar mais detalhado, entretanto, mostra um claro objetivo geopolítico de seu governo, que seria alcançado com o mesquinho uso do futuro desses milhões de sírios.
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Em suma, Erdogan quer criar uma “zona segura” ao longo de 480 quilômetros de fronteira entre Turquia e Síria, “ao leste do Eufrates”, trinta quilômetros adentro de território sírio. Segundo ele, essa “zona segura” poderia ser ampliada para até oitenta quilômetros adentro. No plano original, entre um e dois milhões de sírios seriam realocados de volta para território sírio; no plano ampliado, até três milhões de refugiados, aproximadamente o número original de refugiados na Turquia.
O “aproximadamente” se deve ao fato do número aumentar. Segundo o governo de Ancara, cerca de meio milhão de crianças cidadãs sírias nasceram na Turquia nos últimos sete anos. Cerca de outro milhão de sírios estão no Líbano e mais um milhão na Jordânia, os três países que mais receberam refugiados do conflito que se arrasta desde 2011. Algo bem longe da imagem que alguns tentaram pintar, de que os países da região não acolheram os refugiados; na verdade, os que chegaram na Europa foram uma minoria com mais recursos.
Interesse geopolítico
O próprio Erdogan reconheceu que esses dois países precisam fazer parte de qualquer eventual solução de assentamento de refugiados. Também disse que um maciço apoio financeiro internacional precisaria ser orquestrado para viabilizar o plano. Finalmente, deixou em aberto as opções políticas: “seja com os EUA ou com forças da coalizão, Rússia e Irã, nós podemos conversar ombreados, de mãos dadas para que refugiados possam ser assentados, salvando-os de campos de tendas e contêineres”.
Como dito, em uma primeira vista, é um plano absolutamente justo e necessário. Todos os especialistas já dizem, por anos, que o que os refugiados precisam é do fim da guerra, para que possam eventualmente retornar para casa. O primeiro aspecto “maquiavélico” do plano é visível num mapa. Os territórios dessa proposta “zona segura” ao leste do Eufrates são os territórios da região atualmente controlada pelos curdos, comumente chamada de Rojava, parte da coalizão das Forças Democráticas Sírias (SDF, na sigla em inglês).
Oras, essa região está delineada na própria bandeira da SDF, formada principalmente por curdos, com apoio de assírios, árabes sunitas, armênios e outros grupos minoritários. E uma região autônoma curda é o maior temor de qualquer governo turco, o possível embrião de um Estado curdo, a maior etnia sem um Estado próprio no planeta. São até vinte milhões de curdos dentro da Turquia, um quinto da população, chamados ali de “turcos das montanhas”, já que o próprio termo “curdo” é mal visto.
Mais do que um plano de assentamento de refugiados, trata-se de um plano de diluição da presença curda em seu próprio território. Estimativas colocam a população de Rojava em dois milhões de pessoas. O que significaria a chegada de três milhões de sírios, assentados ali por potências internacionais? Como essa questão numérica afetaria práticas culturais, identidades nacionais, idiomas? Isso em uma perspectiva otimista, caso um plano desses não envolva a expulsão das populações curdas, pelo interesse turco.
Outro aspecto do assentamento em si é: quantos refugiados sírios eram originalmente dessas áreas? Das cinco maiores cidades sírias antes da guerra, nenhuma fica além do Eufrates; se ampliarmos para as dez maiores cidades, duas ficam além do rio e outras duas são cruzadas por ele. Uma dessas é Raqqa, que se tornou mais conhecida como “capital” do Daesh (autoproclamado Estado Islâmico). Pessoas que não são originalmente dali deveriam ser assentadas na região? É uma pergunta de difícil resposta.
Interesses econômicos
Por um lado, são cidadãos sírios, refugiados de uma guerra. Por outro, as raízes dessas pessoas estão em suas casas, não apenas no seu Estado nacional. O que leva a outro uso político dos sírios por Erdogan. Desde 2016, a Turquia usa os sírios dentro de sua fronteira como chantagem para obter concessões e vistas grossas dos países europeus. No dia Cinco de Setembro, quando apresentou esse plano para o parlamento turco, Erdogan foi claro: “Ou isso (o plano) acontece ou teremos que abrir os portões”.
No caso, uma referência a uma suposta “liberação da passagem” dos sírios para dentro de território europeu, via as fronteiras terrestres com a Grécia e com a Bulgária. As autoridades europeias, de tempos em tempos, precisam agradar um governo cada vez mais autoritário em Ancara pela comodidade de ter em Erdogan um “leão de chácara” de suas fronteiras. A justificativa do governo turco é a de que os turcos que arcam com os custos dos campos de refugiados, que somariam trinta bilhões de dólares desde 2011.
Por outro lado, a Turquia também é o país que mais recebe aportes financeiros, tanto de outros países quanto de agências internacionais. Não se pode negar os esforços do governo turco para o refúgio dos sírios, um esforço louvável; ao mesmo tempo, tais esforços, como visto, servem de escudo para os próprios interesses do governo Erdogan. Em Nove de Abril de 2016, Erdogan disse: “Recebemos muitos agradecimentos por nossas ações sobre refugiados, mas não fazemos isso pelos agradecimentos”.
Em um contexto pós-eleições parlamentares europeias, de Brexit, de crises políticas em países como a Itália, véspera de eleições nos EUA, Erdogan quer aproveitar esse momento para barganhar e conseguir novas concessões. Nenhum líder europeu vai querer arcar com a imagem de ser o responsável, mesmo que indireto, da chegada de dezenas de milhares de sírios. Não nesse momento atribulado. O que parece preocupação e humanitarismo é, na verdade, o uso político de milhões de pessoas que perderam muito na guerra.