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Filipe Figueiredo

Filipe Figueiredo

Explicações para os principais acontecimentos da política internacional

Ernesto Araújo e os campos de extermínio nazistas

Portão de entrada do antigo campo de concentração em Dachau, sul da Alemanha, com a inscrição "O trabalho liberta" (Foto: Christof STACHE / AFP)

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Diversas organizações civis judaicas exigiram um pedido de desculpas do chanceler brasileiro, Ernesto Araújo, por ele ter comparado medidas de isolamento durante a pandemia do novo coronavírus com “campos de concentração nazistas”. O leitor certamente se deparou com notícias relatando o que ocorreu, assim como pode ler o texto original do chanceler, que criticava um texto do filósofo esloveno Slavoj Zizek. Araújo se defendeu dizendo que foi mal interpretado; a mesma argumentação de Zizek sobre o texto de Ernesto, curiosamente. Uma arenga, como se diz em algumas regiões do Brasil. Nada disso, entretanto, será o ponto deste texto, para trazer outra discussão, o verdadeiro problema da expressão “campos de concentração nazistas”.

O primeiro campo de concentração construído pela Alemanha nazista foi o de Dachau, em 1933, usando a estrutura de uma antiga fábrica. Localizado na Baviera, inicialmente era para opositores políticos do regime ou “elementos indesejados” da sociedade: comunistas, homossexuais, testemunhas de Jeová, dentre outros. Uma grande prisão, incluindo aí tortura, péssimas condições, violência cotidiana e terror psicológico. Progressivamente ele foi expandido para incluir campos de trabalhos forçados e também recebeu outros tipos de pessoas, desde criminosos comuns até estrangeiros de países ocupados pelos nazistas. O campo funcionou até abril de 1945 e, segundo o site de seu memorial, recebeu um total de cerca de 188 mil prisioneiros; desses, cerca de 41 mil morreram sob custódia.

Existiram outros 28 complexos de campos de concentração similares ao de Dachau, incluindo alas prisionais, campos de trabalhos de forçados, fábricas, tortura e morte. Se Dachau foi o primeiro, o último estabelecido foi o de Kistarcsa, na Hungria, em 1944, já nos estertores do derrotado Reich. Muitos desses campos eram em território alemão. O maior campo de concentração foi o de Buchenwald, construído em 1937, na região de Weimar; ali, 300 mil pessoas foram presas e 56 mil morreram. Assassinadas, por subnutrição, por doenças, por trabalho até a total exaustão. A lista de 28 complexos pode ser debatida, já que campos menores, muitas vezes apenas para trânsito, também existiram. O número total pode superar 60 campos.

Extermínio, não concentração

Alguns leitores podem ter estranhado a coluna dizer que o maior campo de concentração foi o de Buchenwald. “Oras, e Auschwitz?”. Esse é o ponto. Auschwitz era o maior dos complexos, com dezenas de campos menores e três grandes campos. Auschwitz III-Monowitz, um campo de trabalhos forçados para fábricas da IG Farben. E os campos de Auschwitz e de Auschwitz II-Birkenau, que não eram “meros” campos de concentração. Eram campos de extermínio. Uma particularidade nazista, algo completamente único, sem paralelo em outro lugar até nossos dias. Os campos de extermínio colocam a violência do nazismo como algo singular, a maior expressão da “banalidade do mal”, termo da filósofa alemã Hannah Arendt quando de sua cobertura do julgamento de Eichmann em Jerusalém.

Ela, enquanto reporta e analisa o comportamento de um dos arquitetos do Holocausto judeu em seu julgamento, aponta que o nazismo direcionou uma imensa máquina burocrática, em que “se cumpriam ordens” com extrema eficiência, para o extermínio de pessoas em escala industrial. Uma linha de montagem da morte. Em Auschwitz, no total, foram cerca de 1.300.000 prisioneiros; desses, ao menos 1.100.000 pessoas foram exterminadas, a maioria de judeus. São números só menos assustadores do que a máquina que foi implementada para esse extermínio. Cronogramas de trens, de quantidades de pessoas, turnos de guardas, inspeções, um gigantesco aparato voltado para a aniquilação de pessoas por sua etnia, sua religião, sua orientação sexual.

Existiram apenas sete campos de extermínio. Além de Auschwitz, os campos de Chelmno, Belzec, Sobibor, Treblinka e Majdanek eram construídos e operados pela Alemanha no território da Polônia ocupada; em Treblinka, cerca de 800 mil pessoas foram mortas em apenas 14 meses de funcionamento. Soma-se na lista o caso particular do campo de Jasenovac, na atual Croácia, operado pelo regime fascista local da Ustaše, fantoches do Eixo. A maioria de suas vítimas foi de sérvios étnicos, mas judeus, roma e outras pessoas também foram mortas ali. Esses sete campos particulares não podem ser colocados como “campos de concentração”, e daí origina-se o debate em torno das palavras usadas pelo chanceler Ernesto Araújo.

Ao comparar medidas de quarentena com “campos de concentração nazistas”, Ernesto Araújo acabou ofendendo muitas pessoas pois ligou uma restrição de movimento de uma pessoa em sua própria casa com um extermínio sistemático de pessoas levadas à força para um campo. E não se trata de julgar o texto em si do chanceler, mas a precisão histórica. Se o leitor ouvir ou ler a expressão “campos de concentração nazistas”, provavelmente vai pensar imediatamente em cenas de Auschwitz, nos crematórios enormes, na linha de trem que desemboca direto no portão do campo. Mesmo que o autor da expressão queira se referir apenas ao ato de restringir a mobilidade, de confinar pessoas ou até mesmo uma colônia penal.

Relativização na História

Repete-se, desvinculado do caso específico do chanceler, esse colunista não tem como saber o que o chanceler quis dizer, ou deixou de querer. O fato é que a comparação soará ofensiva para muitas pessoas por parecer que diminui os atos da violência nazista, uma violência que estava longe da barbárie de turbas ensandecidas, mas era extremamente organizada, fria e metódica. E, de fato, esse termo é muitas vezes utilizado para relativizar ou diminuir o caráter único do extermínio promovido pelo nazismo. “Ah, mas em tal lugar ou tal época também teve campo de concentração!”. Ainda na década de 1860, os confederados construíram um campo de concentração na Guerra Civil dos EUA, cujas fotos chocantes podem ser vistas na série documental do brilhante Ken Burns.

Britânicos construíram campos de concentração nas guerras contra os bôeres, na África do Sul. O Império Alemão confinou os sobreviventes do genocídio herero em campos na atual Namíbia. Durante a Segunda Guerra Mundial, o governo dos EUA prendeu grande parte de sua população de origem nipônica em campos de concentração. O ator George Takei, o Sulu de Jornada nas Estrelas, cresceu em um deles. Tivemos campos de concentração até no Brasil, muito ignorados, como os do Ceará na década de 1930, para impedir que refugiados da seca do sertão chegassem nas cidades maiores, como Fortaleza.

Campos de trabalhos forçados ou colônias penais também não são algo relativamente novo. A Austrália foi colonizada pelos britânicos como uma colônia penal. O império russo ocupou a Sibéria com colônias penais de trabalho forçado, as katorga, inclusive para dissidentes políticos. Posteriormente, as katorga foram ampliadas pela União Soviética sob a agência Gulag; a propagação dos campos foi tão grande que inspirou o nome da obra seminal de Alexander Soljenítsin, Arquipélago Gulag, como um conjunto de ilhas distribuídas pelos Urais e pela Sibéria. E também não se trata de uma prática que ficou em um passado distante. Até 1996, por exemplo, a África do Sul tinha uma colônia penal política, a Robben Island, onde esteve Mandela.

Hoje, em 2020, fatia considerável da população masculina muçulmana uigur no oeste da China está confinada em “Centros de educação e formação vocacional”, um eufemismo para uma prática apontada por 22 países como um campo de concentração. Mesmo com todos esses exemplos, históricos e contemporâneos, onde muitas pessoas sofreram, morreram e tiveram seus mais básicos direitos solapados, nada se compara ao extermínio de pessoas em escala industrial realizado pela Alemanha nazista. Provavelmente, se falássemos “campos de extermínio nazistas”, além de ser conceitualmente mais preciso, algumas comparações sensíveis não seriam feitas.

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