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Amanhã, dia 12 de setembro de 2020, o governo afegão iniciará as negociações formais com o grupo Talibã para um acordo de paz. O processo é consequência de acordo anterior, entre o grupo e os EUA, assinado em fevereiro. Nos meses seguintes, o governo afegão libertou prisioneiros integrantes do Talibã e o governo Trump iniciou a retirada das tropas de seu país do território afegão. A esperança é que um acordo entre o governo e o Talibã chegue numa estrutura de partilha de poder em uma paz duradoura. E essa esperança está depositada em vão, infelizmente.
A delegação afegã será chefiada por Abdullah Abdullah, chefe de ministros de 2014 a 2020 que reivindicou ter sido eleito presidente do país em março de 2019 e é uma das principais figuras políticas afegãs. Após um acordo entre ele e Ashraf Ghani, o outro candidato da eleição, foi criado um governo de unidade nacional em maio último. Ou seja, o próprio governo de Cabul ficou fragmentado por mais de um ano. Como parte do acordo, Abdullah Abdullah foi escolhido para chefiar o Alto Conselho para Reconciliação Nacional, responsável pelas negociações com o Talibã e, na prática, com poderes em relação a aspectos de defesa, de política externa e da economia.
Já a delegação do Talibã será chefiada pelo mulá Abdul Ghani Baradar, o “ministro de relações exteriores” do grupo, responsável pelas negociações com os EUA. Uma diferença do perfil das delegações é visível no fato de que os representantes do governo contam com quatro mulheres em seus quadros, incluindo a ativista Fawzia Koofi, que sofreu uma tentativa de assassinato mês passado. Já a delegação Talibã, para surpresa de ninguém, não conta com mulheres. E qual seria o motivo, então, de dizer que as esperanças de um acordo duradouro são em vão?
Terrorismo
Poderiam ser citados alguns motivos, como o fato de ser considerado um grupo terrorista. Esses motivos, entretanto, são facilmente rebatidos em outros contextos. No mesmo exemplo, de grupo terrorista, essa é muitas vezes uma definição imposta de maneira unilateral, por um Estado ou grupo rival. O clichê de que alguém que é terrorista para uns é um combatente legítimo para outros, os rótulos de “traidor” e o de “defensor da liberdade” dependem do olhar. O Exército Republicano Irlandês (IRA), a FALINTIL timorense, a Haganah judaica, dentre exemplos, são grupos que foram considerados terroristas por alguém, enquanto outros os consideravam seus representantes. O caso do IRA, inclusive, é um ótimo exemplo de negociação bem-sucedida entre um governo e um grupo classificado como terrorista por esse mesmo governo.
Um argumento mais grave que esse é o que o Talibã é um grupo que conduziu ações que podem ser classificadas como genocídio. Hindus foram perseguidos, hazaras foram massacrados, patrimônio cultural foi destruído, como o infame caso dos Budas de Bamiyan, dezenas de milhares de pessoas foram mortas ou expulsas de suas casas. Todos esses acontecimentos foram mais visíveis no auge do poder do Talibã, entre 1996 e 2001, mas não são restritos ao período. Ainda assim, pode-se argumentar que, mesmo em casos de genocídio, uma reconciliação é possível. Mesmo que com cicatrizes, seria possível negociar. Ruanda, Timor Leste, Bósnia e Herzegovina, os curdos no Iraque, seriam alguns exemplos disso.
Confiança no Talibã
Chega-se então na questão principal em relação ao Talibã. Qualquer negociação implica na necessidade de confiança. Desde entre duas crianças trocando lanches no recreio da escola até representantes de dois Estados nacionais. E o Talibã não é confiável, como mostra a História. Não existe negociação duradoura com o Talibã. Como mencionado, o acordo entre EUA e o Talibã foi assinado em fevereiro de 2020. Desde então, o grupo realizou ao menos 32 ataques que deixaram ao menos 312 mortos, incluindo escaramuças com forças de segurança, ataques contra quartéis, atentados suicidas contra civis, etc.
Que tipo de trégua deixa mais de um corpo por dia pelo caminho? E isso é um exemplo quase superficial, já que o histórico do Talibã é repleto de violações de tréguas e de acordos. O próprio Abdullah Abdullah, negociador chefe, deveria saber disso mais do que qualquer um. Durante a guerra civil afegã nos anos 1990, ele era um dos principais integrantes do “governo” da Aliança do Norte, cujo principal líder era Ahmad Shah Massoud, o Leão de Panjshir. Considerado um herói local da luta contra os soviéticos, Massoud defendia a igualdade entre homens e mulheres, com as áreas sob seu controle tendo qualidade de vida notavelmente acima do restante do país.
Abandonado pelos aliados ocidentais na luta contra o Talibã, que tinha apoio do Paquistão e dos sauditas, Massoud foi assassinado em 9 de setembro de 2001, numa operação financiada por Osama bin Laden e realizada pelo Talibã. Integrantes do grupo, disfarçados de jornalistas, após muita insistência, conseguiram uma entrevista com Massoud, sob uma bandeira de trégua. Ambos tinham coletes de explosivos e cometeram suicídio, matando o líder da Aliança do Norte de forma sorrateira. Negociar ou partilhar poder não faz parte da mentalidade do Talibã.
Repetidas vezes, o grupo usa tréguas apenas para se recuperar, reestruturar e retomar a ofensiva. E esse é o problema em negociar com o Talibã, não se pode confiar que ele cumprirá seu lado da barganha. Não cumpriu na guerra civil, não cumpriu quando governo, não cumpriu depois da invasão pela Otan, não cumpriu sequer no mês passado. Se partilhar poder não faz parte do espírito do grupo, tampouco a visão do Talibã é de uma jihad global, erro frequente em muitas análises. O que o Talibã deseja é o Emirado do Afeganistão, unindo o Islã e a cultura tradicional pachtuns. Não mais que isso, mas também não menos do que isso.
Isso quer dizer que não existe solução para o Afeganistão? Claro que existe, só que ela passa pelo desmantelamento do Talibã, não por seu reconhecimento, ou de suas políticas violentas. O primeiro passo para uma negociação precisava passar pela deposição das armas, e agora é tarde para isso. É possível, e até desejável, que essa coluna envelheça muito mal e se mostre totalmente errada. Infelizmente, nada nos últimos vinte e cinco anos indica isso e, em breve, agora sob olhar chinês, o Afeganistão provavelmente vai retornar ao ciclo de conflito que dura quatro décadas.