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Os catalães vão para as urnas neste domingo, 14 de fevereiro de 2021, para escolher os ocupantes de todos os 135 assentos do parlamento regional da comunidade autônoma. As eleições foram adiadas e judicializadas devido tanto às crises políticas internas quanto por causa da pandemia. Para o governo de Madri, independente da vertente ideológica e partidária do ocupante do governo, foi na Catalunha que nasceu a maior crise política do país no século XXI. Sendo assim, é desejável evitar que um cenário como o de 2017 se repita. Para isso, o governo de Pedro Sánchez lançou uma carta de peso na mesa, mas não há garantia de sucesso.
Duas breves recapitulações devem ser feitas para entender o cenário atual. Primeiro, voltemos a setembro de 2015, duas eleições catalãs atrás, durante o governo nacional de Mariano Rajoy, do Partido Popular, de centro-direita. Naquela ocasião, a coalizão Junts pel Sí, uma amálgama de movimentos pela independência da Catalunha, conseguiu uma vitória esmagadora, com 62 assentos. O nome da coalizão, “Juntos pelo sim”, se refere ao referendo popular pela independência, ou não, da comunidade autônoma. Com um acordo com a Candidatura da Unidade Popular, de esquerda, e seus dez assentos, foi empossado o governo de Carles Puigdemont, com uma bandeira muito clara: a independência catalã.
Independência
Dois anos depois, em setembro de 2017, o parlamento catalão aprovou a realização do referendo pela independência. A sessão não contou com o quórum mínimo e a votação foi questionada na justiça local e na Corte Constitucional. Ainda assim, o referendo foi adiante no dia Primeiro de outubro, com 92% dos eleitores votando pela independência. O que poderia ser um número dos sonhos para os independentistas tinha um calcanhar de Aquiles, o fato de que apenas 48% do eleitorado compareceu. Foram semanas de protestos, contra e a favor da separação, com prisões e cenas de violência.
A cena mais conhecida desse processo foi a declaração de independência, feita por Puigdemont, no dia 10 de outubro de 2017, no parlamento regional. Uma multidão vibrou, mas a euforia durou apenas alguns segundos, já que o líder regional imediatamente suspendeu a declaração, para “iniciar um diálogo”. O documento foi votado apenas no dia 27, com 70 votos a favor, 10 contra e 53 abstenções. O mesmo documento foi questionado na justiça e, ao fim do dia, Rajoy invocou o artigo da constituição espanhola que permite interferência nas comunidades autônomas. O governo Puigdemont foi automaticamente dissolvido, novas eleições seriam marcadas e, enquanto isso, um governo interino, liderado pela vice de Rajoy, Soraya Sáenz de Santamaría, assumiu o cargo.
Líderes catalães foram presos e Carles Puigdemont exilou-se na Bélgica, até que seu pedido de prisão fosse revogado. As eleições foram realizadas em dezembro de 2017, a mais recente eleição na Catalunha, ainda durante o governo nacional de Rajoy. Naquela ocasião, o Ciudadanos, de centro-direita e pró-Madri, conseguiu o melhor resultado, com 36 cadeiras. Parecia um alívio para o governo nacional, um partido que não possuía bandeiras pela independência foi o vencedor, além de ser um partido com boas relações com o PP de Rajoy. Os partidos pela independência catalã, entretanto, mesmo não ficando em primeiro lugar, ainda tinham a maioria, com partidos de centro e de esquerda.
Ou seja, Madri ganhou, mas não levou. O empossado para o governo regional foi Quim Torra, do Junts, uma sucessão partidária de centro da coalizão pelo referendo. Torra era a quarta opção dos partidos pela independência, um moderado que só alcançou o posto pois os três primeiros da lista foram barrados pelo judiciário, como o próprio Puigdemont. E todo esse processo, descrito brevemente em alguns parágrafos, abalou seriamente a Espanha. A Catalunha é a região mais rica da Espanha e importante centro econômico, afetando toda a economia do país. Em junho de 2018, Rajoy sofreu moção de censura no parlamento espanhol, encerrando seus seis anos à frente da Espanha, substituído por Pedro Sánchez, do PSOE, de centro-esquerda. O tema do separatismo catalão afetou também as relações exteriores espanholas, com o tema evocado em entrevistas até constrangedoras.
A maior crise espanhola
Foi, sem dúvidas, a maior crise vivida pela Espanha no século XXI. E aqui entra a segunda recapitulação. Quim Torra, embora um moderado, foi impedido, em dezembro de 2019, pelo Supremo Tribunal de Justiça catalão de exercer qualquer cargo eletivo, por desobedecer à legislação eleitoral durante as eleições nacionais, em abril daquele ano. Torra recorreu, mas foi destituído nove meses depois, em setembro de 2020. Durante esse período, a intenção era a de realizar uma nova eleição, com todos os partidos de acordo, entretanto, a pandemia do novo coronavírus adiou essa possibilidade. Nos últimos treze meses, mais de um ano, a Catalunha está governada de maneira interina, seja por Torra, enquanto recorria de sua condenação, seja por Pere Aragonès, da Esquerda Republicana da Catalunha.
De maio de 2020, a eleição passou para outubro. De outubro, para dezembro. Finalmente, em 21 de dezembro, o parlamento foi formalmente dissolvido e as eleições marcadas para 14 de fevereiro de 2021. Essa recapitulação é importante para a compreensão do cenário atual da Catalunha: mais de um ano com um arranjo político empurrado com a barriga, enquanto a região sofre com a pandemia, seja em vítimas, com 9.791 mortes totais, algo proporcionalmente maior do que os números franceses, brasileiros e argentinos, seja em danos econômicos, com um verão perdido numa região onde o turismo é importante atividade econômica.
Somado com o risco de uma nova crise com os movimentos independentistas, Pedro Sánchez fez seu partido indicar um nome de peso ao governo regional, Salvador Illa, ministro da Saúde e líder dos esforços do governo nacional espanhol contra a pandemia. Nascido em La Roca del Vallès, na Catalunha, ele esteve em evidência nacional, por motivos óbvios, como “braço direito” de Sánchez em 2020. Em um olhar precipitado, a aposta parece estar se pagando. Illa lidera a maioria das pesquisas. Um olhar mais atento, entretanto, nos lembra das eleições de dezembro de 2017, quando Madri ganhou, mas não levou. Mesmo que Illa vença as eleições, o bloco independentista ainda será maior.
Para o pesadelo de Madri, os independentistas ainda possuem chances de ficarem também em primeiro. Caso isso não aconteça, outro cenário possível é uma pulverização tamanha do parlamento catalão que inviabilize uma coalizão, já que o Ciudadanos aparece bem nas pesquisas e o Vox, populista de direita, provavelmente estreará no parlamento catalão. Esse talvez seja um cenário que não aborreça tanto Madri, já que ainda impede os independentistas de ter um controle amplo, mas certamente aborrece os catalães, que vivem a indecisão por mais de um ano. Finalmente, colocar seu ministro da saúde para concorrer a uma eleição é uma maneira de Sanchéz tatear seu próprio prestígio eleitoral e popular após uma pandemia. Uma aposta arriscada.