Americana Jade Carey exibe sua medalha de ouro no pódio para o exercício feminino de solo durante os eventos de ginástica artística dos Jogos Olímpicos de Tóquio 2020, em Tóquio, Japão, 02 de agosto de 2021| Foto: HOW HWEE YOUNG/Agência EFE
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Chegam ao fim os Jogos Olímpicos de Tóquio 2020, realizados em 2021. Com uma tímida festa de encerramento, consequência da pandemia, a capital japonesa prepara a transição para os Jogos Paralímpicos, programados para o dia 24 de agosto. As semanas dos jogos foram acompanhadas, em diversos veículos de mídia e perfis de comitês olímpicos, pela discussão sobre quem estaria ganhando os jogos, qual país estava em primeiro, e qual país terminou os jogos em primeiro.

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Os EUA terminaram com 39 medalhas de ouro, 41 de prata e 33 de bronze, totalizando 113 medalhas. Foi o país que terminou com mais medalhas de ouro e mais medalhas totais. Por boa parte dos jogos, entretanto, o país estava atrás da China em número de ouros, o critério habitualmente utilizado para o “placar” dos jogos. Com isso, diversos jornais dos EUA passaram a utilizar o critério do número total de medalhas, para colocar seu país no topo do “placar”, já que, nesse número, o domínio pelos EUA foi constante.

No último dia dos jogos, literalmente, a delegação dos EUA venceu mais dois ouros e passou os chineses. Como se nada tivesse acontecido antes, os mesmos jornais retornaram ao “placar clássico” de quantidade de ouros. EUA em primeiro, China em segundo. Ok, um comportamento meio cara de pau, mas que seria apenas uma nota de rodapé, uma anedota, longe de justificar uma coluna inteira sobre o tema. Se o assunto tivesse acabado aí, claro.

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Critérios

Começaram a circular prints de redes sociais chinesas e de ao menos um jornal chinês mostrando um “placar” em que a China está em primeiro lugar. Novamente, tudo uma questão de metodologia. Nesse caso, a soma das medalhas das delegações da República Popular da China, de Hong Kong e da China Taipei. Ou seja, de Taiwan, a delegação esportiva que representa a República da China, sob outro nome, devido a política de Uma Só China adotada por ambas as repúblicas.

Hong Kong compete como um comitê olímpico próprio, fundado em 1950 e mantido pelo acordo de 1997, entre a China e o Reino Unido, situação que permanecerá até 2047. É até razoável somar as medalhas de Hong Kong com as da República Popular da China, mas, a soma com as de China Taipei fica mais descarada. E política. “São todos chineses”, pode alegar alguém. Correto, são da mesma nação, mas a intenção da soma é, além de garantir o primeiro lugar do “placar”, denotar que são o mesmo Estado.

Ok, então é uma disputa entre EUA e China? Um jornal italiano fez um ranking com a soma dos comitês olímpicos da União Europeia como um só competidor. O total de 61 ouros, 74 pratas e 89 bronzes colocaria a UE como grande vencedora dos jogos. Claro que essa soma é apenas para entretenimento, já que, se fossem as regras verdadeiras, diversos atletas europeus eliminariam outros das competições, diminuindo a possibilidade de medalhas finais.

A brincadeira ganhou contornos mais sérios quando foi compartilhada por políticos do Parlamento Europeu. Provavelmente o primeiro foi Radek Sikorski, ex-ministro de Relações Exteriores da Polônia por sete anos. Aqui no nosso espaço já foi tratada, algumas vezes, a relação entre esporte e a política. Inclusive no caso da União Europeia, e uma delegação unificada sem dúvida seria um passo curioso no processo de federalização europeia, embora possivelmente com repercussões negativas mais fortes.

Competição inexistente

O motivo da coluna usar “placar” entre aspas se deve ao fato de não existir um placar oficial entre os países, uma competição geral entre os comitês olímpicos. São 33 esportes, com 50 modalidades e 339 competições. Cada uma delas tem um começo, um meio e um fim. O “placar” entre países é uma criação do público e da imprensa, uma maneira de acirrar, e vender, a competição. O sentimento pátrio é uma ótima ferramenta de marketing nos esportes, não ficando restrito a agonia ou ao prazer de torcer por alguém.

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Muitos dos leitores provavelmente nunca haviam acompanhado uma competição de skate antes. Ainda assim, milhões de brasileiros torceram pela “fadinha” Rayssa Leal. Certamente não acompanharam alguma modalidade em que não havia muitas chances para um atleta brasileiro, até mesmo uma modalidade que já torceram por um compatriota no passado. Apimentar a competição criando um ranking de medalhas pode ser uma brincadeira saudável ou um marketing inofensivo.

Também pode ser política e propaganda. Afirmação de um país, projeção como potência, “cartão de visitas” perante ao mundo. As relações entre esporte, imagem nacional e soft power são muito analisadas. No caso dos Jogos Olímpicos, o embate entre as duas superpotências da Guerra Fria, EUA e URSS, talvez seja o melhor exemplo. Entre 1948 e 1988 foram realizados onze jogos de verão. Dois deles, em 1980 e em 1984, foram marcados por boicotes.

Nos jogos de 1948 a URSS não competiu por questões socioeconômicas derivadas da destruição da Segunda Guerra Mundial. Dos oito jogos restantes, os EUA ganharam mais medalhas de ouro e mais medalhas totais em 1952 e em 1968. Em 1964, ficaram com mais medalhas de ouro, mas menos medalhas totais. Nas outras cinco edições, os soviéticos triunfaram em ambos os critérios e, em 1976 e em 1988, a Alemanha Oriental ficou à frente dos EUA no “placar”.

“Guerra Fria 2.0”

Frisar uma competição entre EUA e, agora, China, pelo topo do maior evento esportivo do planeta em número de modalidades envolvidas é também frisar a ideia de que as duas potências travam uma disputa pela proeminência global. É repaginar a antiga disputa entre EUA e soviéticos, numa versão “atualizada”, no que por vezes é chamado de Guerra Fria 2.0, embora a coluna tenha algumas restrições com esse termo. Assim como criar uma contagem única da UE também possui uma mensagem política.

Respondendo o título da coluna, a nação que venceu a fictícia “competição geral” em Tóquio foi os EUA, claro. A adoção de critérios “maleáveis” serve para a criação de narrativas em choque. Mais importante do que ficar em primeiro nesse “placar” é compreender, por exemplo, que a posição dos EUA é consequência de uma ampla estrutura esportiva pública escolar, ou testemunhar momentos históricos, como as primeiras medalhas de pequenas nações como Burkina Faso, San Marino e Turcomenistão.

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No fim das contas, de certo modo, a criação de um “placar” entre as nações, embora divertido, deturpa o espírito olímpico, a lendária trégua entre as cidades-estado gregas durante a realização dos jogos. Claro que isso é uma figura de linguagem, mas aplicável. E esse fenômeno certamente se intensificará daqui três anos, em Paris. Para sublimar o embate pelas armas, que poderia causar uma hecatombe, a disputa é pelo 5G, por mercados e por consumidores. E também pelos lugares mais altos dos pódios.