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O primeiro dia de discursos do Debate Geral da Assembleia Geral da ONU foi agitado. Os pronunciamentos podem servir para delinear as prioridades daquele Estado perante a comunidade internacional, responder ou fazer acusações contra outro Estado, reiterar reivindicações ou apontar injustiças, pedir apoio e solidariedade e até mesmo dar recados para o público interno do seu país. Tudo isso já foi escrito aqui e, no conjunto, os discursos também permitem constatar afinidades e antagonismos entre governos e Estados no cenário internacional. É o caso dos discursos das quatro potências do Conselho de Segurança que já se pronunciaram.
Logo no primeiro dia, Donald J. Trump, Xi Jinping, Vladimir Putin e Emmanuel Macron discursaram por seus países. Uma mudança de hábitos proporcionada pelo formato online adotado devido ao novo coronavírus, já que nem Xi e nem Putin costumam discursar na Assembleia Geral, representados por seus ministros de relações exteriores, embora seja possível dizer que Putin tinha intenção de estar presente, já que se trata de um aniversário “redondo” da fundação da ONU, 75 anos, e ele prestigiou presencialmente datas similares no passado. De qualquer maneira, o discurso ser feito pelo chefe de Estado ou de governo adiciona peso, especialmente às eventuais acusações.
Trump apontando dedos contra China
O discurso de Donald Trump durou menos de dez minutos. Relembrou do aniversário de 75 anos do fim da Segunda Guerra Mundial e que o mundo está enfrentando uma “nova crise”. Principalmente, ele direcionou suas armas para a China e usou sua habitual terminologia de “vírus chinês” em relação ao novo coronavírus. Esse discurso do “vírus chinês” serve para conquistar os corações e mentes para as disputas entre EUA e China, que são geopolíticas, tecnológicas e econômicas, e para criar um álibi para a inação do próprio governo dos EUA no início da pandemia, desmerecendo a ameaça representada pela doença e proporcionando o contexto que fez dos EUA o país com mais mortes devido ao vírus.
O uso do termo “vírus chinês” pelo governo Trump já foi detalhadamente abordado nesse espaço e, ao repeti-lo no principal fórum internacional, ele serve para um terceiro propósito. Acusar o outro e estabelecer uma clivagem entre “nós e nossos aliados” e “eles”. Frisando que isso é uma constatação, não um julgamento de valor. É uma abordagem política. Divisiva e talvez polêmica? Sem dúvidas, mas nem por isso inválida. Essa clivagem ficou também visível quando Trump falou sobre as pesquisas de vacinas e produção de insumos de saúde, adicionando que isso está disponível aos países aliados, contrariando as ideias de universalidade de uma potencial vacina eficaz.
Ainda nessa pauta, Trump denunciou a Organização Mundial de Saúde como conduzida pela China e defendeu o unilateralismo, expresso em seu slogan “Make America great again”. Também mencionou o poderio militar do seu país e disse que nenhum governo investiu tanto em defesa quanto o dele, algo que, num fórum internacional, soa mais como ameaça do que como proposta. Trump foi seguido por Recep Erdogan, presidente da Turquia, que foi seguido pelo presidente chinês. Xi Jinping falou por cerca de catorze minutos, e a substância de seu pronunciamento foi, basicamente, diametralmente oposta ao de Donald Trump, o que certamente não é uma coincidência.
Xi insinuando contra os EUA
Classificou o vírus como uma ameaça enfrentada por toda a humanidade, reforçando a necessidade de cooperação internacional para superar a pandemia. Essa não foi a única menção ao multilateralismo nas palavras de Xi, que alfinetou os EUA pela paralisação da Organização Mundial do Comércio, afirmando que ela é importante para o crescimento econômico mundial. O termo “alfinetando” não é liberdade poética. Enquanto Trump citou explicitamente a China, Xi falou apenas em outras potências e nas condutas que seu governo considere necessárias. Supostamente uma abordagem mais construtiva e menos divisiva, mas, para um ouvinte atento, um ou dois momentos beiram o cinismo.
Xi também falou sobre vacinas e também de forma oposta aos EUA, defendendo um acesso universal de vacinas e afirmando que seu país distribuirá os medicamentos de forma gratuita para países mais pobres, especialmente na África, usando a expressão cooperação sul-sul. E, enquanto Trump defendeu a saída de seu país do Acordo de Paris sobre o meio-ambiente e disse que, mesmo assim, seu governo estaria supostamente fazendo mais pelo clima do que os outros, acusando a China de ser a maior poluidora, Xi defendeu uma “revolução verde” e a necessidade de crescimento sustentável. Para ele, a crise econômica derivada da pandemia seria uma oportunidade de reconstruir a economia, agora “verde”.
Seria superficial e óbvio dizer apenas que EUA e China tiveram tons e propostas diferentes. O ponto principal para o leitor, com possíveis impactos de médio e de longo prazo, é a defesa do unilateralismo pelos EUA, enquanto a China defendeu mecanismos multilaterais. O motivo é simples. Washington representa a maior potência econômica e militar do planeta, e possui muito mais poder de barganha sozinha, incluindo o poder de impor seus desejos. Mesmo que de maneira desastrosa, como a invasão do Iraque em 2003, em flagrante violação do direito internacional, deixa mais do que provado. Ainda assim, os músculos dos EUA são muito mais fortes do que dos outros países.
Multilateralismo e História
Ao mesmo tempo, a China possui, hoje, uma presença política e de investimentos muito mais ampla do que a dos EUA. O país americano mantém sua influência no hemisfério, mas se distanciou da África nas últimas décadas, enquanto a China expandiu sua presença no continente. Além disso, a posição geográfica da China facilita boas relações com mais países vizinhos, algo expresso de forma cristalina nas iniciativas de investimentos da Nova Rota da Seda e do Colar de Pérolas. Com maior número de países com boas relações, a China consegue articular maiorias de votos nas organizações multilaterais, algo que está na gênese das acusações de que a OMS é “controlada pela China”, por exemplo.
Finalmente, uma nomenclatura curiosa foi utilizada por Xi. Em duas circunstâncias diferentes, ele chamou a Segunda Guerra Mundial de Guerra Mundial contra o Fascismo. Isso pode ter várias explicações, e elas não se excluem. Primeiro, o termo Segunda Guerra Mundial é habitualmente associado ao conflito na Europa, com a invasão alemã da Polônia em 1939. Para os chineses, entretanto, a guerra já havia começado em 1937, com a invasão japonesa e a segunda guerra Sino-japonesa. Segundo, talvez lembrar que o Japão da época tinha um governo com elementos fascistas, numa crítica ao processo de rearmamento japonês.
Pode ser também uma lembrança, triste, da ascensão de políticas reminiscentes do fascismo pelo mundo. Ou até mesmo uma insinuação de que o governo dos EUA teria elementos similares aos do fascismo, ou ao menos que alguns de seus simpatizantes sejam fascistas. Algo, convenhamos, difícil de negar com as infames imagens de Charlottesville em 2017, por exemplo. Ainda assim, é uma terminologia curiosa e que permite diversas interpretações. O que não permite diversas interpretações, entretanto, é a clara diferença na abordagem e na visão de mundo entre EUA e China hoje. Isso está explícito e dito em alto em bom som, para o mundo todo ouvir. Literalmente.
Aviso aos leitores que, como o Reino Unido ainda não discursou na Assembleia Geral, os discursos dos outros três países permanentes do Conselho Segurança serão abordados em conjunto numa ocasião futura.