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O atual chefe da diplomacia europeia aparentemente possui a cabeça no século XIX. O espanhol Josep Borrell, cujo cargo completo é Alto Representante da União para os Negócios Estrangeiros e a Política de Segurança, falou na cerimônia de inauguração da Academia Diplomática Europeia, em Bruges, na Bélgica, para um público de diplomatas europeus. Suas palavras carregam tons de racismo, do velho imperialismo europeu e são desconectadas do mundo atual.
O discurso foi, em boa parte, sobre a invasão russa da Ucrânia e questões derivadas, como a construção de uma suposta nova ordem de segurança internacional e a necessidade das pessoas se engajarem mais com questões de política internacional e de diplomacia. Também trouxe uma nova e importante discussão sobre a necessidade de ministérios serem “reinventados”, já que assuntos antes apenas domésticos agora implicam em aspectos tanto internos quanto externos aos Estados.
Nessa argumentação, Borrell quis destacar o potencial papel da União Europeia nesse cenário. Para isso, afirmou que a “Europa é um jardim”. “Nós construímos um jardim. Tudo funciona. É a melhor combinação de liberdade política, prosperidade económica e coesão social que a humanidade foi capaz de construir – as três coisas juntas.”. Uma visão romântica, idílica, idealizada, mas, vá lá, se fosse apenas essa a figura de linguagem utilizada.
O mundo é uma selva
Para Borrell, o chefe da diplomacia europeia, falando perante jovens diplomatas, não apenas a Europa é um jardim, mas “a maior parte do resto do mundo é uma selva, e a selva pode invadir o jardim. Os jardineiros devem cuidar disso”. Os “jardineiros”, no caso, são os diplomatas. A analogia racista e colonialista continua. Ao defender um maior engajamento europeu com o mundo, ele afirma que “Os jardineiros têm que ir para a selva. Os europeus têm de estar muito mais envolvidos com o resto do mundo.”.
A conclusão, então, é espantosa. “Caso contrário, o resto do mundo nos invadirá, por diferentes formas e meios.”. É uma fala tão desastrosa para um diplomata, tão contraditória nos seus próprios termos e tão errada para qualquer cidadão com conhecimento de História recente que é difícil saber por onde começar. Os países europeus possuem, sim, bom padrão de vida para a maioria das pessoas, bons índices econômicos e acadêmicos, dentre várias qualidades. Não se trata de negar os méritos da Europa.
Muitos desses méritos, inclusive, vieram com a construção de uma ordem europeia comum, que culminaram na União Europeia. Por séculos os europeus não estavam pensando exatamente no seu padrão de vida, mas em matarem uns aos outros. Por adorarem, ou não, imagens de santos, por linhas traçadas num mapa, por serem judeus ou por heranças dinásticas de séculos antes. E isso acabou, se é que acabou, basicamente ontem, ao final da Segunda Guerra Mundial.
O mais construtivo conflito da humanidade começou na Europa, o continente onde foi gestado. Então, a Europa aprendeu suas lições nas últimas décadas. Borrell, inclusive, cita brevemente esse processo. O que ele esquece, entretanto, é que defender os méritos da Europa não implica em negar os méritos do resto do mundo e de outras sociedades, que enfrentaram desafios tão duros quanto e também avançaram, e avançam, em conquistas e avanços. O mundo não é dividido entre um jardim perfeito e uma selva bárbara.
Sangue alheio
Além de esquecer os méritos alheios, principalmente, Borrell parece esquecer que muitos desses méritos vieram da exploração colonial e imperial de outros territórios, outros povos e outras culturas. Se a Europa é um jardim hoje, esse jardim foi regado com muito sangue de povos “da selva”. Ao falar da necessidade dos “jardineiros” irem para a “selva”. Borrell parece acreditar ainda na versão romantizada e mentirosa de que seus antepassados espanhóis vieram trazer a “civilização” para a América.
Não, vieram buscar ouro, produtos para serem comercializados, mão-de-obra barata e descartável por sua cor de pele, tudo isso enquanto afagavam a própria consciência achando que cumpriam alguma cruzada ou “obra divina”. Não, isso não é nenhum anacronismo, não é um olhar do século XXI. Ainda no século XVI homens como Bartolomeu de las Casas já denunciavam a barbárie que viam em seus conterrâneos. Talvez Borrell prefira ser comparado com alguém mais recente.
Seus “jardineiros indo cuidar da selva” talvez estejam apenas cumprindo o “Fardo do Homem Branco”, de Rudyard Kipling, que justificou a expansão europeia pela África e pela Ásia no século XIX. O auge do racismo pseudocientífico, da ideia de que o homem branco seria superior pela genética, em uma interpretação totalmente distorcida da obra de Darwin. Chega a ser irônico ele falar essas palavras em Bruges, na Bélgica, região, e país, tão beneficiado pelo imperialismo e pelo racismo do século XIX.
Enquanto milhões de congoleses eram mortos e trabalhavam à exaustão, a Bélgica e seu monarca, o criminoso Leopoldo II, enriqueciam. Novamente, nenhum anacronismo aqui, já que Joseph Conrad denunciou toda essa violência enquanto ela acontecia, na obra Coração das Trevas, que esse colunista já até prefaciou em certa edição. E é imperativo lembrar que essa relação é uma via de mão dupla. Não se trata apenas do “jardim” ter sido construído com recursos e com o trabalho da “selva”.
Se Borrell acha que alguns lugares do mundo são uma “selva”, ele também acha que isso não tem relação com o fato de que, por séculos, algumas regiões do globo foram privadas dos frutos de seu próprio trabalho? Por exemplo, o quanto do “jardim” francês foi construído não por mãos francesas, mas por mãos de africanos escravizados que foram explorados em suas colônias caribenhas? Como destacamos em coluna sobre o Haiti, estamos falando de centenas de bilhões de dólares em valores atuais.
Desafios
A mesma dinâmica se aplica às negociações sobre a crise climática e a necessidade de revertê-las. Hoje, países como China, Índia e Brasil são dos maiores poluidores do mundo. Em números acumulados, entretanto, a Europa e os EUA são, de muito longe, os maiores poluidores da História. A industrialização indiana tem algumas décadas, o Reino Unido polui desde o século XVIII, ao ponto de ter exaurido diversas de suas reservas de carvão mineral. Queimaram tudo para construir esse “jardim”, deixando a conta para o mundo todo.
O tom e as palavras de Borrell já são espantosos por si, mas o choque vai além quando, após a óbvia e justa repercussão negativa de suas palavras, ele afirmou que não viu problema nenhum nelas. Repercussão negativa, diga-se, inclusive dentro da Europa e por aliados europeus, como pelo embaixador canadense na UE. Esse é o pior tipo de pensamento exclusivista e discriminatório, o que está tão enraizado na mentalidade do indivíduo que ele sequer vê problemas.
Borrell dificilmente chamaria um diplomata indiano de “macaco”. Para ele, isso sim seria inadmissível. Falar que o resto do mundo é uma selva e ignorar os séculos de violência que criaram essa dinâmica, entretanto, é “normal”. Ele deve se considerar uma pessoa progressista, inclusive, já que é filiado ao PSOE espanhol, de centro-esquerda, integrando governos desse partido. Em seu discurso chegou até a “alfinetar” Donald Trump, afirmando que “construir um muro” não é uma boa solução.
Enquanto Borrell defendeu a necessidade européia de engajar mais com o restante do mundo e criticou, por exemplo, que um quinto dos países do mundo se abstiveram de votar na ONU em relação à guerra na Ucrânia, ele, no fim das contas, conseguiu apenas alienar ainda mais esses países da “selva”. E, sem esses países da “selva”, a UE enfrentará cada vez mais e mais desafios. Sim, hoje ela possui diversas vantagens, fruto do acúmulo de riquezas e conhecimento desses séculos.
No médio e longo prazo, entretanto, a UE enfrentará diversos problemas. Sua parcela da população global é ínfima e está em declínio. Sua parcela da riqueza global também está caindo, com a ascensão de China, Índia e outros atores. Sua articulação interna está em crise com a guerra na Ucrânia, e a política de defesa europeia está em uma encruzilhada, dividida entre ser a parceira júnior dos EUA e a construção de uma ordem de segurança própria, custosa em dinheiro e em articulação política.
Borrell sabe disso tudo. Melhor dizendo, deve saber. Hoje já é possível questionar o julgamento e a capacidade do chefe da diplomacia europeia, já que, mesmo perante esses desafios, em que parceiros serão muito importantes, ele opta por usar uma terminologia não apenas eurocêntrica, mas discriminatória. Antiquada, preconceituosa. Não estamos mais no século XIX e, se há alguma “selva” nessa história toda, primitiva e selvagem, ela está nas palavras de Borrell. A UE merece alguém mais conectado ao mundo real nesse cargo.