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Nos últimos meses, a Arábia Saudita intensificou seus investimentos supostamente em esporte, mas na verdade em sua própria imagem. O leitor provavelmente conhece o termo em inglês sportswashing, algo como “lavar via esporte”. No caso, lavar a reputação, a imagem, de um dos países mais autoritários do mundo. Fazer com que “Arábia Saudita” deixe de significar repressão na cabeça das pessoas, mas signifique futebol, golfe e Cristiano Ronaldo.
Não é a primeira vez que falamos de sportwashing aqui em nosso espaço. Esse era um dos pontos para se compreender a política do Catar em desejar sediar a Copa do Mundo de futebol masculino em 2022, por exemplo. Os sauditas, na última década, adotaram política similar, com investimentos bilionários em esporte, com duas diferenças. Primeiro, enquanto o Catar apostou a maioria de suas fichas em um grande evento, os sauditas as dividem em vários esportes e modalidades.
Segundo, os sauditas, nos últimos anos, investem pesado também em esportes tidos como “elitistas”, associados ao público mais abastado e a marcas de luxo. Uma das notícias mais recentes nesse assunto é que, no início do mês, as três principais organizações do golfe profissional, PGA Tour, DP World Tour e Liv Golf, anunciaram uma fusão. A Liv Golf foi fundada em 2022 justamente pelos sauditas, atraindo diversos atletas da modalidade com seus prêmios de valores astronômicos.
Golfe e elites
O mais famoso e considerado o maior atleta da história da modalidade, Tiger Woods, recusou US$ 800 milhões para se juntar ao Liv Golf. Esse valor equivale ao salário anual somado dos 30 mais bem pagos atletas do basquete profissional masculino dos EUA, a NBA, uma das ligas esportivas mais ricas do mundo. Não há razoabilidade no montante oferecido, sequer a mínima plausibilidade de que esse valor geraria retorno equivalente. Apenas transformaria Woods em garoto-propaganda do regime saudita, um funcionário público muito bem pago. Tanto, que ele recusou.
A citada fusão das três organizações de golfe será financiada e conduzida por quem? Pelo fundo soberano saudita. Meses atrás, em dezembro, Riad, capital saudita, foi palco de um luxuoso torneio amistoso de tênis, com alguns dos principais atletas da modalidade. A maior parte das arquibancadas estava vazia e os patrocinadores eram quase todos nomes de estatais sauditas. O australiano Nick Kyrgios foi publicamente honesto: estava ali pelo cachê fora dos padrões.
Jedá, histórica cidade da península arábica, é palco, desde 2021, de um belo e extravagante Grand Prix noturno de Fórmula 1. Nesse caso, o exemplo serve apenas para contextualizar a política saudita, já que a principal modalidade do automobilismo nunca foi exemplo de ética esportiva, realizando provas na África do Sul do apartheid mesmo durante o boicote esportivo internacional. Também não seria totalmente justo colocar a organização de eventos de hipismo e turfe nessa conta, já que esportes equestres são típicos da cultura da península arábica, mesmo com o uso político desses.
Por outro lado, o sportswashing fica evidente na crescente participação saudita em modalidades bastante midiáticas. No boxe, por exemplo, o país organizou, em 2019, a “Luta nas Dunas”, valendo pelo título mundial de pesos-pesados, entre Andy Ruiz Jr. e Anthony Joshua. O fundo soberano saudita também está progressivamente tornando-se o dono do World Wrestling Entertainment, entretenimento muito popular nos EUA que une luta corporal e teatralidade, o antigo “telecatch” no Brasil. O principal evento da modalidade é realizado em terras sauditas desde 2018.
Nos eSports, modalidades digitais, o cenário não é muito diferente, com volumosas compras sauditas. Se citamos modalidades associadas a marcas de luxo e outras modalidades midiáticas, chega a hora de olharmos para o crescente envolvimento saudita com o esporte mais popular do mundo, o futebol. O dinheiro saudita está jorrando na modalidade, seja para adquirir clubes no exterior, trazer jogos e craques para o país, ou associar a marca do Estado saudita a campeonatos e clubes mundo afora.
Futebol
A justificativa oficial saudita é popularizar e difundir o jogo em seu país, servindo de exemplo e inspiração para a juventude saudita. O reino absolutista, inclusive, é um país onde a população está se tornando mais jovem, com a queda da idade média. A justificativa, entretanto, é balela. O discurso já era usado nos anos 1980, culminando na participação saudita na Copa do Mundo de 1994. O futebol já é o esporte mais popular do país.
Além disso, as cifras envolvidas não conseguem ser justificadas em uma perspectiva esportiva ou econômica. Cristiano Ronaldo, contratado pelo Al Nassr, é o maior salário da história do futebol, com mais de US$ 200 milhões por temporada. Um dos maiores jogadores da história do esporte, sim, mas no crepúsculo de sua carreira. O clube, gerido pelo fundo soberano saudita, espera vender camisas suficientes para custear a contratação? Conquistar torneios mundo afora?
Não, trata-se apenas do marketing de dizer que um dos maiores atletas da história joga na Arábia Saudita. Agora é a vez de Karim Benzema, que, além de ter sido eleito melhor do mundo, é muçulmano praticante, o que foi destacado em sua apresentação no país. O fundo soberano saudita também passou a controlar o tradicional clube inglês Newcastle. Alvinegro, o clube anunciou uma nova camisa alternativa praticamente idêntica ao uniforme da seleção nacional saudita.
O ministro dos esportes saudita, príncipe Abdulaziz bin Turki al-Saud, afirmou em entrevista que deseja que o esporte sirva para que as pessoas visitem seu país e vejam como “ele realmente é”. Ou seja, vejam as fachadas de mármore, as coreografias e o luxo aparentemente infinito dos bilhões de dólares despejados no projeto de sportswashing, que fica nítido nessa declaração. Falta de judiciário independente? Absolutismo? Falta de liberdade de imprensa e respeito aos direitos humanos? Oitenta e uma pessoas executadas por decapitação em apenas um dia? Não pensem em nada disso, foquem em Cristiano Ronaldo e no golfe.