Na última semana, o Instituto Finlay anunciou que começará a terceira fase de testes de sua possível vacina contra o novo coronavírus. Caso o leitor não conheça a instituição, não tem problema. É o principal centro de pesquisa epidemiológica de Cuba, o “Instituto Butantan” da ilha, numa analogia, que carrega os problemas de qualquer analogia. O imunizante cubano torna-se o oitavo do mundo, somando candidatos e os já em uso, originados de sete países diferentes. Nenhum desses é o Brasil, cujo governo tem dado péssimos exemplos na administração da pandemia do novo coronavírus, com enorme custo interno e externo ao país, movidos por visões ideológicas tacanhas.
O anúncio do início da terceira fase de testes significa que a vacina, batizada de Soberana-2, foi aprovada em animais nos testes pré-clínicos e é segura para uso em humanos, nas fases um e dois, com efeito imunizante. Agora, trata-se de determinar a sua eficácia, em estudos com grande número de participantes, comparando com o uso de placebos. A vacina, assim como várias outras, requer duas doses e, feita para a realidade cubana, não necessita de super-refrigeração, podendo ser conservada em geladeiras comuns, como a maioria das vacinas mais comuns para outras doenças, como as contra hepatite e sarampo. Seu custo provavelmente será baixo, e o governo cubano pretende produzir até cem milhões de doses, incluindo o fornecimento aos turistas, para reanimar a economia da ilha.
Vacinas pelo mundo
Em outras palavras, o país que é a 61ª economia do mundo, menos de 8% do Produto Interno Bruto brasileiro, está no caminho de produzir uma vacina barata e acessível, enquanto o governo brasileiro bate cabeça sobre a compra e uso de vacinas diferentes. Esses mesmos atributos da potencial vacina cubana, ser barata e acessível, também se fazem presentes nas vacinas pesquisadas e desenvolvidas pela China, em três instituições diferentes, pela Rússia, no Instituto Gamaleya, pela Índia, pela empresa Bharat Biotech, e pelo Reino Unido, entre a Universidade de Oxford e a empresa AstraZeneca. A maioria dos imunizantes requer duas doses, mas uma vacina potencial é de dose única, diminuindo ainda mais os custos e acelerando a imunização da população.
A economia russa também é comparável ao tamanho da economia brasileira, com o agravante de que seu sistema financeiro está sob sanções dos EUA, devido a anexação da Crimeia, o que dificulta reservas em moedas fortes, como o dólar. A economia indiana, embora maior que a brasileira em números brutos, fica bastante atrás em termos relativos, como o PIB per capita, dado seu gigantismo demográfico. E ambos os países, assim como a China, enfrentam um desafio similar ao do Brasil e ao da maioria dos países onde a pobreza ainda se faz presente. O da logística de distribuir uma vacina por um território esparso, onde muitas regiões não contam com a estrutura de super refrigeradores ou linhas de comunicação integradas. Comunidades ribeirinhas na Amazônia, vilas na Sibéria ou na Patagônia, enfim, não é difícil imaginar do que se trata.
E essa é a situação da maioria dos países do mundo. Uma vacina barata e fácil de distribuir seria extremamente premiada. Essa foi a fundamentação da grande jogada russa, em anunciar sua vacina, batizada de Sputnik V, ainda em agosto de 2020. O nome faz clara referência ao pioneirismo russo, então soviético, na corrida especial, com o primeiro satélite artificial da Terra. Complementa a letra “V”, de vacina, não o numeral romano. Criticada inicialmente por supostamente apressar os testes clínicos, os estudos publicados recentemente em revistas científicas mostraram uma eficácia acima de 90%. E o fato é que uma vacina barata e fácil de distribuir já está sendo extremamente premiada.
Diplomacia da vacina
Só a Sputnik V já teve mais de um bilhão de doses encomendadas. A chamada vacina de Oxford, além de centenas de milhões de encomendas, será produzida em mais de meia dúzia de países, incluindo Argentina e México. Desses países, serão distribuídas para vizinhos latino-americanos. Mesmo as vacinas produzidas em instituições sem fins lucrativos, como a russa, terão retorno financeiro, pagando seus custos de desenvolvimento e de produção. Além dos ganhos econômicos, há o ganho político, com as vacinas como arma diplomática para aproximação entre governos e entre setores produtivos. A compra da vacina russa, por exemplo, é por vezes intermediada pelo fundo soberano de investimentos da Rússia, como no Paraguai, introduzindo esse ator econômico no país sul-americano.
A diplomacia da vacina está tão intensa que Emmanuel Macron, presidente francês, já busca articular uma política comum com os EUA e com a Alemanha para fornecer vacinas para países em desenvolvimento, cujos mercados estão sendo tomados por imunizantes russos, chineses e, potencialmente, indianos. E ignore-se caricaturas ideológicas da Guerra Fria. Israel, cujo governo Netanyahu é dito como admirado por Bolsonaro, está retomando sua economia após intensa campanha de vacinação, com o imunizante satirizado publicamente pelo presidente brasileiro, se referindo ao potencial “jacaré” fruto dos termos de uso da vacina. Oferecida ao Brasil meses atrás, inclusive. Israel iniciou hoje sua “diplomacia da vacina”, com convênio com Honduras, país em processo de designar Jerusalém como capital israelense. Outro exemplo recente é o Chile, governado pelo conservador Sebastián Piñera, iniciou sua campanha de vacinação com a chinesa Coronavac.
A mesma vacina foi ideologizada no Brasil, tanto por sua origem chinesa quanto por uma disputa partidária interna, já que ela contou com o convênio do Instituto Butantan para seu desenvolvimento e sua produção. O instituto é do estado de São Paulo, governado por João Dória, potencial rival eleitoral do atual presidente, Jair Bolsonaro, em 2022, com constantes trocas de farpas entre os dois. O fato é que o Brasil de 2020 perdeu uma grande oportunidade. E essa perda é responsabilidade do atual governo federal. Caso o Brasil tivesse um governo formado por um presidente comprometido e ministros competentes com visões além das suas ideologias, teria, meses atrás, encarado a pandemia com seriedade e anunciado que o governo federal forneceria todo o apoio, e investimento, necessário para as instituições de excelência brasileiras, como o Instituto Butantan e a Fundação Fiocruz, pudessem desenvolver e produzir uma vacina referência para países em desenvolvimento.
Esse presidente imaginário sairia ganhando, com prestígio político e reconhecimento. A população brasileira sairia ganhando, com uma vacina barata. O Brasil sairia ganhando, em imagem, na política, na diplomacia com países em desenvolvimento, e também economicamente, exportando o imunizante. O caminho adotado foi o totalmente oposto, com a diminuição da gravidade da pandemia, mudanças de ocupantes de cargos importantes, o desperdício de dezenas de milhões de dólares em ideias mentirosas e irresponsáveis, como o uso de hidroxicloroquina contra o novo coronavírus, a falta de entrosamento entre os diferentes integrantes do governo federal, um chanceler motivo de caricatura no exterior e um racha completo entre os entes da federação movido pelo comportamento eleitoreiro de Bolsonaro e de Dória.
Erros brasileiros
Todos esses erros foram acompanhados do desmonte da pesquisa e das universidades brasileiras, cuja única sustentação é a bobagem ideológica de “doutrinação comunista” e correlatos. A mesma bobagem e o mesmo erro da década de 1970, quando mais de mil professores e cientistas brasileiros foram perseguidos e exilados, indo parar em instituições de excelência estrangeiras. O Brasil custeou a formação de nomes como o físico Roberto Salmeron, que passou o auge de sua produção na Organização Europeia para a Investigação Nuclear (CERN), na Suíça, e como o médico Luiz Hildebrando Pereira da Silva, do Instituto Pasteur na França. Nos últimos dois anos, a fuga de cérebros do Brasil somente cresceu. Isso compromete a economia brasileira no curto, no médio e no longo prazo, ainda mais em meio uma nova corrida tecnológica da Quinta Revolução Industrial.
Enquanto os países expandem seus investimentos em universidades e institutos de pesquisa, o governo brasileiro pretende diminuir o orçamento disponível para investimentos do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações de 3,7 bilhões de reais em 2020 para 2,7 bilhões em 2021. O orçamento previsto para o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) para 2021 é de apenas 22,5 milhões de reais. Cerca de um quarto do desperdiçado com hidroxicloroquina. Existem professores individuais que controlam um orçamento maior que esse na Europa. Um pesquisador com mais recursos do que um país de 200 milhões de pessoas. Soa absurdo pois é. E esse texto não possui propósito partidário, já que o citado Dória também desejava cortar os recursos da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).
Pode-se argumentar que não se trata apenas de dinheiro, que países como Rússia e Índia possuem também pesquisadores mais qualificados. Além de ser efeito direto da presença de investimentos, é importante lembrar os vários avanços de cientistas brasileiros nas pesquisas sobre o novo coronavírus. Por exemplo, ainda em fevereiro de 2020, as cientistas Ester Sabino, diretora do Instituto de Medicina Tropical da USP, (IMT-USP) e Jaqueline Goes de Jesus, pós-doutoranda com bolsa Fapesp da instituição, sequenciaram o genoma do vírus encontrado em um cidadão brasileiro infectado na Itália. O sequenciamento foi feito em dois dias, enquanto a média de outros países eram quinze. Elas realizaram a pesquisa antes mesmo da Itália, onde o homem havia sido diagnosticado.
Outro argumento comum é que o investimento em pesquisas e universidades não rende nada “prático”, não rende “coisas úteis para a sociedade” e, por isso, devem focar na iniciativa privada. A ciência de base, em qualquer área, é produzida justamente para ser produção de conhecimento, cuja aplicação prática virá depois. Um cientista de humanidades, como um economista, produzirá algo que baseará uma política pública futura, um físico descobrirá uma inovação que será incorporada na tecnologia. A descoberta da eletricidade veio antes do carregador USB, e não tinha “uso prático” então. A vacina da Pfizer–BioNTech, que usa um inovador método de RNA, baseia-se nas pesquisas da húngara Katalin Karikó, que passou três décadas pesquisando RNA em instituições da Hungria e dos EUA, sem a necessidade de “uso prático”. Até que ele veio, em 2021.
O fato é que o governo brasileiro conseguiu fazer todas as escolhas erradas possíveis nos últimos quinze meses no que concerne à saúde pública, política externa, pesquisa e desenvolvimento. O Brasil tem o potencial para desenvolver uma vacina própria, barata e acessível, contra o novo coronavírus e colher todos os frutos que ela renderia, com recuperação da economia mais rápida e imagem no exterior. E o governo também seria premiado pela competência, mas optaram pelo caminho totalmente oposto. Do descaso, do obscurantismo, da incompetência e do discurso de "patriotismo", mas um patriotismo vazio, mera idolatria de símbolos. Patriotismo seria ver o ganho que uma vacina brasileira proporcionaria, e que essa oportunidade não poderia ser perdida.