Ouça este conteúdo
Na última semana, o parlamento português votou o orçamento nacional, sem perspectivas otimistas pela frente. Uma das características da forma parlamentarista de governo é o fato de que o país passa por vários testes políticos que, caso não sejam superados, podem engatilhar a dissolução do governo e a convocação de novas eleições. Uma realidade muito distinta do presidencialismo, onde o presidente, tendo a maioria ou a minoria no legislativo, precisa conviver com isso, sem muito poder de escolha. E, em Portugal, o orçamento cumpriu esse papel de gatilho para novas eleições.
Na quarta-feira, dia 27 de outubro, a Assembleia da República portuguesa votou o orçamento nacional para 2022. O governo era então formado pela “Geringonça”, a aliança entre o Partido Socialista, social-democrata, o Partido Comunista Português e o Bloco de Esquerda, formado por três pequenos partidos da esquerda radical lusitana. Das 230 cadeiras da Assembleia, a Geringonça possuía 137, uma maioria até confortável. Dessas, 108 são do PS, o partido com mais deputados em Portugal. O nome da coalizão se dava por um termo que, inicialmente depreciativo, foi apropriado pelos partidos para se referir ao fato de que o PS e o PCP, historicamente rivais, haviam se unido.
O racha entre sociais-democratas e comunistas não é novo e nem localizado em Portugal. Talvez o exemplo mais debatido da História seja o da república de Weimar, quando sociais-democratas acusavam os comunistas de serem extremistas e oportunistas, enquanto eram criticados como partidos burgueses que faziam concessões liberais em nome de um reformismo. Em Portugal, entretanto, a união chegou ao fim. O primeiro-ministro António Costa defende a proposta de orçamento feita como o “mais ambicioso” de Portugal, com expansão de investimentos em saúde pública e uma proposta fiscal para que a classe média pague menos imposto de renda.
Fim da Geringonça?
Essa é outra curiosidade da Geringonça: ela manteve a disciplina fiscal que marca Portugal pós-crise de 2008, iniciada por José Sócrates, também do PS. Mesmo com um governo de esquerda, o Estado português não é um “Estado gastão”. Ainda assim, os parceiros da coalizão não ficaram satisfeitos com o orçamento, desejando maiores investimentos estatais, aumento do salário mínimo e expansão da legislação trabalhista. Como consequência, apenas os 108 deputados do PS votaram pela proposta orçamentária. Outros 117 votos foram contrários, mais cinco abstenções. Na última quinta-feira, quatro de novembro, o presidente Marcelo Rebelo de Sousa oficializou o fim do governo.
O parlamento será dissolvido e novas eleições serão realizadas em 30 de janeiro de 2022, com pouco mais de dois meses para campanhas. Foi a primeira vez da atual república portuguesa, fundada em 1975 após a ditadura salazarista, que o orçamento não foi aprovado. Outro assunto que será parte das eleições é o fato de que o próximo governo poderá gerenciar ao menos parte dos quinze bilhões de euros que o país vai receber do fundo de recuperação e resiliência da União Europeia, como parte da superação das consequências econômicas da pandemia. Com as novas eleições sacramentadas, resta analisar o que cada ator político deseja com esse desdobramento.
Começando pelo PS. Afinal, o que explicaria a postura do atualmente maior partido português, vencedor das eleições de 2019, em não querer fazer maiores concessões aos seus parceiros de coalizão? Apenas questões ideológicas ou o pragmatismo de executar o orçamento? Na verdade, é possível que António Costa tenha desejado esse desdobramento. Ele continua interinamente no cargo e provavelmente será o candidato do Partido Socialista, com o partido colocando suas fichas no prospecto de vencer as eleições e ter, sozinho, a maioria parlamentar, dispensando a necessidade de coalizão. Afinal, faltam “apenas” oito cadeiras para essa maioria absoluta.
Conservadores e eleições locais
No caminho dos planos do PS está o fato de que meses atrás o país realizou eleições locais. E o desempenho do partido não foi bom. O partido teve 1,6% menos votos do que em 2017 e perdeu doze prefeituras, 54 conselheiros municipais e 307 assentos nas freguesias em comparação ao que tinha. Como “cereja do bolo”, o PS perdeu o governo de Lisboa para a principal coalizão conservadora de oposição, entre o Partido Social Democrata e o Partido Popular. Claro, as regras de proporção entre os votos locais e os votos nacionais são diferentes, mas, ainda assim, não é um cenário otimista.
Já os comunistas e o Bloco de Esquerda, em uma nova eleição, pretendem marcar sua distância em relação ao PS, tentando fugir da ideia de serem “linhas auxiliares”, eventualmente tendo mais poder de barganha perante o sócio menor. Ambos, entretanto, também saíram menores das eleições locais. Se os principais partidos de esquerda saíram menores, então, a conclusão lógica é que a direita ganhou. A coalizão conservadora, já citada, conquistou 15 prefeituras a mais e teve um crescimento de 2% do eleitorado. Além do triunfo em Lisboa, também venceram em Coimbra, antes governada pelo PS. Ao mesmo tempo, é difícil apontar os conservadores como favoritos para a próxima eleição.
Ambos os partidos passam por disputas fratricidas pela liderança interna. A confirmação de novas eleições vai acirrar essas disputas, com um apertadíssimo período de tempo para eleições primárias. Outro ator importante é o Chega, da direita populista, que recebeu os votos de 4% do eleitorado nas eleições locais, embora não tenha vencido nenhuma prefeitura ou presidência de freguesia. O líder do Chega, André Ventura, o “Bolsonaro português”, já esteve presente aqui no nosso espaço. Naquela ocasião, discutimos os dois principais obstáculos que ele continuaria enfrentando. Primeiro, o fato de que a maior parte dos portugueses vê a União Europeia com bons olhos, enquanto sua plataforma nacionalista defende um distanciamento de Bruxelas.
Presidente popular
O outro é o presidente Marcelo Rebelo de Sousa. De trajetória política conservadora e extremamente popular, Rebelo de Sousa já criticou publicamente Ventura mais de uma vez. O católico líder do Chega foi seminarista na juventude, algo explorado por seus adversários, incluindo o também católico Marcelo Rebelo de Sousa, apontando eventuais contradições entre as falas de Ventura e a teologia cristã. Independente desses obstáculos, Ventura e o Chega devem crescer nas eleições futuras, aproveitando tanto o eleitor que costuma se ausentar mas está aborrecido com a segunda eleição em menos de 30 meses, quanto o eleitor dos partidos conservadores que não enxerga neles a força necessária.
E o leitor pode pensar: oras, mas, no parlamentarismo, o presidente é uma figura neutra. No caso português, o presidente, legalmente, possui mais poderes do que, por exemplo, o presidente alemão. Além disso, repete-se que Rebelo de Sousa é extremamente popular. Inclusive, é possível que a atual dissolução do parlamento português tenha recebido certa “colaboração” do presidente, algo que gerou debate em Portugal, se ele teria ferido a neutralidade de seu posto ao dizer, por exemplo, que, caso o orçamento não fosse aprovado, ele dissolveria o parlamento. Teoricamente, ele deveria fazer isso sob “conselho” do primeiro-ministro, não por iniciativa própria.
Se a eleição fosse neste próximo final de semana, ao que as pesquisas e os últimos resultados locais indicam, o leitor sabe o que aconteceria com a Assembleia da República? Ela ficaria com um desenho muito próximo do atual. O PS como maior partido, os conservadores em segundo e, numa terceira prateleira, os partidos radicais de esquerda e o Chega. Na quarta prateleira, a Iniciativa Liberal, uma espécie de “Novo português” e os verdes. O PS, então, precisaria dos partidos da esquerda, que fariam a coalizão para evitar um eventual crescimento da direita num hipotético terceiro pleito. Os lusitanos possuem cerca de 80 dias caso desejem mudar a situação que já existe, seja para dar a maioria ao PS, seja para trocar uma coalizão de esquerda por uma de direita.