O leitor certamente já montou um quebra-cabeças e se viu procurando por aquela peça que parece insignificante, mas conecta os elementos da paisagem sendo montada. É algo parecido com os choques fronteiriços entre Índia e China, que voltaram aos noticiários nas últimas semanas. Claro, trata-se de mera analogia, mas, se quisermos entender a paisagem ampla e completa, não podemos deixar de fora esse pequeno pedaço. Afinal, porque soldados indianos e chineses trocaram socos por uma pequena passagem no Himalaia?
China e Índia, embora frutos de culturas milenares, são Estados relativamente novos. A Índia tornou-se independente em 1947, enquanto a República Popular da China foi formada em 1949, herdeira da república de 1911. Via de regra, Estados novos possuem pendências e divergências fronteiriças com seus vizinhos, especialmente quando esses vizinhos também são Estados recentes. O Brasil, por exemplo, declarou independência em 1822, mas somente cem anos, e algumas guerras, depois, ratificou todos seus limites.
Passagens pelo Himalaia
No caso da fronteira entre China e Índia, uma das maiores do mundo, existem duas pendências. Ao oeste, a região de Aksai Chin, também chamada, raramente, de Caxemira Chinesa. O território de cerca de 37 mil quilômetros quadrados é, hoje, reivindicado pela Índia e controlado pela China. A Índia também reivindica territórios que a China concedeu ao Paquistão, alegando que o governo chinês não tinha autoridade para negociar tais territórios, que seriam indianos em sua totalidade.
Outro território próximo, a passagem de Caracoram, com cerca de sete mil quilômetros quadrados, também é controlado pela China e ponto de discórdia entre os dois países. Um terceiro pequeno território, parte da região indiana de Ladakh, é reivindicado pela China, assim como a vila de Demchok; para os chineses, Dêmqog. Diversos vilarejos e postos fronteiriços são foco de discórdias, mas dentro do contexto da disputa que envolve os territórios maiores.
Também existe uma disputa territorial ao leste, Arunachal Pradesh, a porção do extremo nordeste indiano. O território, de cerca de 83 mil quilômetros quadrados, é reivindicado pela China. Ou seja, no total, a divergência é sobre a soberania de mais de 120 mil quilômetros quadrados, uma área maior que a Coreia do Norte, ou três vezes o tamanho dos Países Baixos. Essa perspectiva é interessante já que, dado o gigantismo brasileiro, temos sempre a impressão de que todos os outros territórios são pequenos.
Essas regiões possuem importâncias similares. São regiões altas no Himalaia, a gigantesca cordilheira que separa o subcontinente indiano da massa de terra asiática. Isso significa que controlam passagens terrestres importantes no terreno acidentado. Ao oeste, as passagens que unem o Tibete ao Paquistão, ao Afeganistão e a Índia. O maior exemplo disso talvez seja a rodovia de Caracoram, de sigla N-35, a rodovia pavimentada em maior altitude da terra, que une a China ao Paquistão.
Ela é uma artéria essencial no fluxo de produtos entre os dois países, consequentemente ligando a China aos terminais portuários paquistaneses, perto do golfo Pérsico e do Mar da Arábia, “contornando” o sudeste asiático e seu gigantesco fluxo marítimo. Hoje o Paquistão é um dos principais destinos de investimentos chineses e possui posição central na estratégia global chinesa chamada de Um cinturão, uma rota, ou de Nova Rota da Seda. Paquistão que é rival histórico da Índia.
A Índia também se interessa pelo controle dessas rotas terrestres, justamente para poder “contornar” o rival Paquistão e acessar a Ásia Central por terra. No leste, a disputa fronteiriça envolve as passagens que ligam a China ao território de Mianmar, assim como a influência no reino do Butão, um país encravado no Himalaia cujo território soberano também é importante ponto de passagem. Os territórios em disputa, tanto no leste quanto no oeste, também possuem outra importância, como terras altas: água.
Água e orgulho nacional
As chuvas nessas regiões alimentam geleiras e rios que abastecem a agricultura de seus entornos, atividade essencial para as populações. Existe também grande potencial hidrelétrico em Arunachal Pradesh, e a Índia iniciou a construção de duas usinas na região nos últimos anos, numa lógica de “ocupar para não entregar”. O receio do impacto das inundações para os reservatórios das usinas foi motivo de mais de um protesto chinês, alegando que seria necessário um acordo bilateral para isso.
Não é apenas por passagens nas montanhas que China e Índia já passaram por conflitos fronteiriços, incluindo uma breve guerra aberta em 1962. Também se trata de orgulho nacional, de ambos os lados da fronteira. Novamente, embora Estados novos, trata-se de culturas milenares, que interpretam o alcance de sua influência para além de suas fronteiras atuais. Um exemplo desse tipo de divergência, que ocorre também em outros lugares, é quando duas culturas possuem nomes diferentes para um mesmo lugar.
Ambos os países vão, em suas argumentações, usar questões de identidade, tanto atual quanto ancestral, para defender a sua posse dos territórios. Em Arunachal Pradesh, controlada pela Índia, o idioma mais falado é da família sino-tibetana, ou seja, um idioma “parente” do chinês. O governo indiano, por sua vez, alega que a China controla territórios que faziam parte do antigo principado da Caxemira, uma herança cultural indiana e um território de influência hindu.
Claro que isso é um extremo resumo de alegações culturais e outra questão também influencia a postura dos dois países. Diversos acordos fronteiriços foram assinados para tentar resolver essas pendências e distribuir o terreno acidentado. O mais conhecido desses é a Convenção de Simla de 1914, que estabeleceu a linha McMahon. A convenção foi assinada entre o Raj Britânico e o Tibete. Em outras palavras, não é um acordo assinado pelos atuais Estados da Índia e da China.
Ao contrário, a China alega que o Tibete não tinha independência para assinar um tratado desses e que trata-se de uma violação de sua soberania. A Índia possui argumento semelhante, de que o Raj britânico não representava os interesses da população indiana e que o país não precisa reconhecer documentos assinados pelas antigas autoridades coloniais. Até a Convenção Anglo-Russa de 1907 já foi evocada nessas disputas fronteiriças, consolidadas na linha do cessar-fogo de 1962.
Finalmente, existe o impacto da relação entre China e Índia na geopolítica global. Por um lado, China e Índia fazem parte do BRICS, que cada vez mais se aproxima de ser RIC, com chineses e indianos tendo relações estratégicas com a Rússia, um aliado em comum. Ambas as potências também fazem parte do Pacto de Xangai; supostamente, o mecanismo deveria ajudar nesse tipo de pendência. Por outro lado, o Paquistão é um tema divisivo, a Índia torna-se uma competidora da China no mercado de armas e, na última década, tem melhorado suas relações com os EUA, atual rival de Pequim.
Um aparente incidente isolado entre soldados numa fronteira pode acabar reverberando de forma mais ampla. Como resposta, a China realizou um exercício militar para demonstrar que pode defender a região em caso de escalada da tensão. Por outro lado, a necessidade de diálogo para resolver o incidente pode aprofundar as relações, quem sabe chegar numa solução comum. Ainda há a possibilidade de um acordo pontual, mantendo a disputa fronteiriça no status quo, em banho-maria, até chegar numa solução duradoura.
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