O presidente eleito dos EUA, Joe Biden, já anunciou alguns dos nomes de seu futuro governo. Vários ganharam destaque na mídia por serem pioneiros em suas demografias, como a economista Janet Yellen, que, caso confirmada pelo Senado, será a primeira mulher como Secretária do Tesouro do país, algo como o Ministério da Economia brasileiro. Outro exemplo desses é Alejandro Mayorkas, que será o primeiro latino como Secretário de Segurança Interna. No meio desses anúncios, já temos dois nomes que vão contribuir para moldar a política externa dos EUA nos próximos anos. Antony Blinken, nomeado como futuro Secretário de Estado, e Lloyd Austin, nomeado Secretário de Defesa. O que essas nomeações podem já dizer sobre a futura política externa do país?
Primeiro, é preciso lembrar que, embora a representação demográfica seja um fator importante no discurso político dos EUA, ela não é suficiente. Vide o que aconteceu com Barack Obama, o primeiro presidente afro-americano, que foi de símbolo de esperança de tempos mais tranquilos e mais respeitos aos Direitos Humanos para o presidente que mais autorizou ataques aéreos fora de um conflito aberto e o presidente do governo que mais violou a privacidade das pessoas ao redor do mundo. E isso não anula eventuais méritos do governo Obama, tampouco é teoria da conspiração, mas algo comprovado com sólidas evidências, como as fornecidas por Edward Snowden. O fato é que um imigrante da América Central ser deportado sumariamente não vai ser menos dolorido pelo aspecto do ocupante do cargo responsável ser de origem cubana.
Segundo, nenhuma das duas nomeações destacadas no foco desse espaço de política internacional será completamente tranquila. Ainda não se sabe qual será a composição do Senado dos EUA, com duas cadeiras para serem decididas na Geórgia. Se os democratas ganharem ambas as vagas, controlarão a casa, já que cada partido terá cinquenta senadores e o desempate será feito pela presidência da casa, que é acumulada com a vice-presidência do país. Ou seja, Kamala Harris. Além disso, Antony Blinken foi vice-Secretário de Estado na gestão Obama e conselheiro de Biden quando este era senador. Ele tem tanto amigos quanto inimigos no Senado, e já entrou em rusgas em audiências anteriores com senadores republicanos.
Dificuldades
A dificuldade de Lloyd Austin será por ser um general, já que a prioridade é que o Secretário de Defesa seja um civil. E não se trata de mera tradição, já que pelo National Security Act de 1947, é necessária uma “quarentena” de sete anos antes que militares reformados possam assumir a função. É necessário que ambas as casas do Congresso votem uma dispensa dessa quarentena.
Embora da reserva, Austin foi reformado apenas em 2016, e chegou ao topo da carreira em tempos de paz, como general de quatro estrelas do exército. Lembrando que, paradoxalmente, os “tempos de paz” dos EUA remontam ao ano de 1945, última vez que o país esteve oficialmente em guerra. A maioria dos Secretários de Defesa que passaram pelas forças armadas não passaram de patentes intermediárias, normalmente servindo em conflitos como a Guerra do Vietnã e depois entrando na vida civil.
Quando Trump nomeou o também general de quatro estrelas, mas fuzileiro naval, Jim Mattis, ele também precisou passar por tal votação. Embora com placares tranquilos, o debate político ficou acalorado. Esse é um aspecto curioso de se lembrar já que, quando da criação do Ministério da Defesa brasileiro, substituindo os três ministérios militares, existiu um discurso de que a atitude foi tomada para “anular” os militares, e não como modernização do quadro ministerial. Oras, desde 1947 os EUA não apenas possuem uma secretaria de Defesa unificada, como cada força possui o seu secretário, que obrigatoriamente é civil. O secretário do Exército é subordinado ao da Defesa que, por sua vez, é subordinado apenas ao presidente do país.
Certezas
Feitas observações gerais sobre as nomeações, pulemos resumos biográficos que preenchem folhas. O que se pode esperar delas? Com certeza, uma política pró-aproximação com a Europa e pró-OTAN. Blinken abertamente criticou as ações de Trump em relação aos aliados europeus dos EUA, como a cobrança por maior participação orçamentária acompanhada de ameaças de retiradas militares. Como de fato ocorreram, mas não pelos motivos que Blinken cita. Austin serviu com, e comandou, tropas de países da OTAN no Afeganistão e no Iraque. Ambos veem as alianças tradicionais dos EUA como importantes para a manutenção da força do país, o que inclui Japão e Coreia do Sul. Além disso, terão um chefe formado na Guerra Fria, que vê a OTAN como um fim em si mesmo e a Rússia como principal adversário.
Outra certeza: ambos advogam por intervenções e pela maior presença militar dos EUA pelo mundo. Austin era contra a retirada dos EUA do Iraque e Blinken defendia uma maior participação do país na guerra na Síria. Principalmente, Blinken foi, junto de Hillary Clinton, um dos articuladores de um dos principais desastres do século XXI, a intervenção dos EUA e da França na Líbia. A intervenção derrubou um ditador? Sim, mas o custo foi o país como um todo. De maior Índice de Desenvolvimento Humano da África para uma terra em guerra civil por quase dez anos, com a presença de grupos jihadistas, tráfico de pessoas, dezenas de milhares de mortos e um milhão de pessoas deslocadas ou necessitando de assistência humanitária. A materialização internacional da expressão “matar a vaca por causa do carrapato”.
Possibilidades e incógnitas
No que concerne a América Latina, Austin não teve comandos significativos na região e Blinken sinaliza uma retomada da política de aproximação de Obama. Talvez ocorra uma reversão das decisões de Trump sobre Cuba e sobre sanções contra a Venezuela. Temos as certezas, as possibilidades e, finalmente, as incógnitas. Qual será a postura do governo Biden em relação ao acordo nuclear com o Irã? O acordo será retomado, será jogado pela janela de vez, será renegociado? Isso influencia diretamente as políticas dos EUA para o Golfo Pérsico e em relação a Israel. Blinken criticou a postura de Trump quanto ao acordo e isso talvez tenha um componente de “orgulho paterno”, já que ele fez parte das negociações.
Outra incógnita: qual será a postura do novo governo perante a Índia? As relações entre EUA e China não serão facilmente remendadas, isso é fato. Outro fato é que foi Obama o primeiro presidente que publicamente falou que a Índia deveria ser um membro do Conselho de Segurança da ONU. Um terceiro fato é que o interesse dos EUA em cortejar a Índia é pensando em deter a China, ao mesmo tempo que indianos e chineses possuem tanto disputas fronteiriças quanto estão presentes nos mesmos fóruns, como o Pacto de Xangai.
Finalmente, uma preocupação é inegável. Os dois indicados, até o momento, eram sócios da mesma empresa de consultoria, a Pine Island, parte da WestExec Advisors, fundada por diversos egressos do governo Obama.
Ambas as empresas “constroem relações” entre o governo e empresas de segurança, de defesa e de tecnologia. É no mínimo “curioso” que ocupantes de duas das principais cadeiras do governo dos EUA estavam juntos numa empresa de consultoria que movimentou centenas de milhões de dólares em apenas três anos. Aparentemente, segundo a imprensa dos EUA, as atividades das empresas não são muito transparentes e, dias atrás, o New York Times levantou questões sobre conflitos de interesses e questões éticas.
O finado presidente dos EUA Dwight Eisenhower cunhou um termo para quando as empresas privadas de defesa possuem relações íntimas com os tomadores de decisão do governo, especialmente intervencionistas: complexo militar-industrial. A partir do dia 20 de janeiro o mundo começará a ter algumas respostas.
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