A segunda-feira (10) marcou os 25 anos do Acordo da Sexta-feira Santa, que encerrou o conflito armado na Irlanda, e, para marcar a data, Joe Biden vai visitar a ilha a partir desta terça-feira (11). O presidente dos EUA fala publicamente com frequência de sua ascendência irlandesa e sua visita inclui tanto aspectos simbólicos quanto questões políticas importantes para o futuro próximo.
Joe Biden é o segundo presidente dos EUA de ascendência irlandesa, depois de John Fitzgerald Kennedy. Assim como Kennedy, Biden é católico romano, o segundo presidente do país dessa religião. O que parece uma mera curiosidade é importante por dois motivos. Primeiro, esses dois presidentes refletem o tamanho e a presença política da diáspora irlandesa nos EUA.
Diáspora e católicos
Somando os nacionais e seus descendentes, cerca de 35 milhões de cidadãos dos EUA possuem conexões com a Irlanda, mais de 10% da população. Como comparação, a população da República da Irlanda é de cerca de 5 milhões de pessoas. A comunidade irlandesa é muito presente especialmente no nordeste dos EUA, uma das regiões mais ricas e urbanas do país.
Isso pode ser visto na cultura popular e nos esportes, com fenômenos culturais dos EUA possuindo símbolos ou ligações com a Irlanda, como o tradicional time de basquete Boston Celtics. Segundo, existirem dois presidentes católicos de origem irlandesa ainda é um número relativamente baixo, em comparação ao tamanho dessa população, como citamos. Isso é fruto de um desenvolvimento histórico dos EUA.
Os irlandeses foram por muito tempo marginalizados da política, enquanto os católicos eram alvo de discriminação e de tentativas de restringir sua representação, emulando os conflitos entre protestantes e católicos no Reino Unido. Por exemplo, no Parlamento inglês, católicos puderam assumir assentos apenas após o Ato de Emancipação Católica de 1829, promulgado sob o governo de um irlandês, o Duque de Wellington.
O leitor certamente conhece a Ku Klux Klan, a milícia racista supremacista branca fundada no sul dos EUA. Inegavelmente, seus principais alvos eram, e são, os afro-americanos. A segunda Klan, entretanto, que existiu de 1915 até meados da década de 1930, também tinha como alvo os católicos, evocando o mito de que os EUA são um país para os “WASP”, acrônimo que, em português, significa “protestante anglo-saxão branco”.
Irlanda do Norte
A visita de Biden será sua primeira à ilha da Irlanda como presidente. Ele começará a visita por Belfast, maior cidade e capital da Irlanda do Norte, parte do Reino Unido. O último presidente dos EUA que visitou Belfast foi Barack Obama, em 2013. Curiosamente, quando Joe Biden era vice-presidente. Foi em Belfast que, em 10 de abril de 1998, foi assinado o Acordo da Sexta-feira Santa.
Os signatários foram os chefes de governo do Reino Unido e da República da Irlanda, Tony Blair e Bertie Ahern, assim como as lideranças de alguns dos principais partidos políticos e grupos armados irlandeses. O então presidente dos EUA, Bill Clinton, contribuiu para mediar a elaboração do acordo. O leitor habitual do nosso espaço de política internacional sabe que mencionamos o acordo com frequência por aqui.
O acordo, com todos seus eventuais problemas, foi essencial para acabar o período de luta armada na ilha da Irlanda, especialmente na Irlanda do Norte, entre grupos republicanos pró-reunificação da ilha e os grupos lealistas pró-monarquia e pró-Londres. O mais conhecido grupo da primeira categoria é o Exército Republicano Irlandês, conhecido pela sigla IRA, enquanto a Força Voluntária do Ulster era o maior grupo da segunda categoria.
Entre 1964 e 1998, a periodização mais comum dos chamados Troubles na Irlanda, no mínimo 3.532 pessoas morreram devido ao conflito. Esse é o número oficial reconhecido pelo processo de paz, com o número real potencialmente maior. Mais da metade dessas vítimas eram civis, mortos em massacres ou em atentados a bomba, normalmente orientados pela confissão religiosa das vítimas.
Brexit
Duas das providências do Acordo da Sexta-feira Santa foram a partilha de poder no Parlamento da Irlanda do Norte e o estabelecimento de uma fronteira aberta entre a Irlanda do Norte, parte do Reino Unido, e a República da Irlanda, independente. Ambas as providências foram severamente afetadas e ameaçadas pelo Brexit. O recente acordo costurado pelo governo Rishi Sunak tenta resolver essa questão.
Ainda assim, o Parlamento regional continua travado, com o Partido Democrático Unionista, conservador pró-Londres, rejeitando o acordo de Windsor. Do outro lado, o Sinn Féin, republicano pró-unificação, afirma que o acordo de Windsor é fraco e vai apenas adiar os problemas na fronteira. É a 14ª vez que o Parlamento regional, chamado de Stormont, fica travado desde 1998.
Alguns desses impasses duraram apenas 24 horas. A atual crise já dura mais de um ano, começando em fevereiro de 2022, quanto o unionista Paul Givan renunciou como ministro-chefe após o acordo promovido pelo governo Boris Johnson, que criaria uma fronteira no estreito da Irlanda, entre as duas ilhas. A presença de Biden em Belfast busca, então, duas coisas.
Em meio aos cerimoniais que vão salientar os laços históricos entre EUA e Irlanda, além de visitas de Biden às cidades de seus ancestrais, o presidente dos EUA vai, primeiro, reafirmar o apoio diplomático dos EUA ao processo de paz, que pode ser mais um elemento de distensão em um chamado Ocidente já marcado por fissuras. Segundo, fornecer apoio econômico ao processo.
O Brexit tem, também, um custo econômico na Irlanda. Como principal potência econômica do mundo, os EUA podem agir nesse sentido, mitigando os efeitos do rompimento entre Reino Unido e União Europeia. Biden vai discursar, inclusive, em um novo campus universitário que foi financiado integralmente pelos EUA. Depois de um dia em Belfast, Biden vai passar três dias na república vizinha.
OTAN
Essa visita promete ser ainda mais marcada pelas cerimônias sobre a diáspora irlandesa, incluindo um tom certamente mais incisivo. Muito da diáspora irlandesa teve origem nas Grandes Fomes do século XIX, que muitos irlandeses afirmam ser consequência de uma política genocida pelas autoridades de Londres. Nos encontros com o premiê Micheál Martin, Biden certamente abordará um tema cada vez mais presente, a OTAN.
A Irlanda é neutra, porém, desde a invasão russa à Ucrânia, cresce a pressão para que a república abandone sua postura histórica e entre na aliança. Falamos um pouco dessa relação aqui antes mesmo da invasão. A entrada da Irlanda na OTAN pode não significar muito em termos militares puros, já que a Irlanda não possui algo como uma potente máquina de guerra, mas também representa ganhos.
Primeiro, a localização da ilha, com os portos ao sul disponíveis para a OTAN. Segundo, uma etapa, mesmo que militar, de integração com o Reino Unido. Terceiro, mais uma condenação diplomática da Rússia no cenário internacional. Importante frisar, entretanto, que esse processo está longe de ser tranquilo, já que o Sinn Féin, importante força política irlandesa, se opõe ao fim da neutralidade.
Em pouco mais de três dias, Biden vai se encontrar com dois chefes de governo, trabalhar as relações históricas e atuais entre seu país e dois importantes aliados, além de tentar mediar duas crises concretas do presente. Talvez tudo isso por se sentir especialmente motivado por seus elos ancestrais ao tema, contrariando sua apatia em outros temas e momentos. Bom para os irlandeses, pelo menos.
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