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No último 30 de maio, o político israelense Naftali Bennett anunciou que o seu partido, o Yamina, aceita fazer parte de um “governo de unidade” em Israel. No caso, a “unidade” é formar um governo que não inclua Benjamin Netanyahu e o seu Likud, o maior partido do parlamento local, o Knesset. Com o lembrete de que a coluna é publicada durante o curso do olho do furacão dos eventos e que os desdobramentos podem mudar rapidamente, quais são os interesses em jogo que podem ser interpretados?
Israel enfrentou quatro eleições em dois anos, e ainda pode passar pela sua quinta eleição ainda em 2021. Não se pode descartar esse cenário, como veremos mais adiante. Existem 120 cadeiras no Knesset, e a formação de um governo precisa contar com ao menos 61 cadeiras, seja de um partido, seja de uma coalizão partidária. Regras básicas do sistema parlamentarista, mas que é interessante de ter em mente. O número mágico é 61. O impasse é causado principalmente por dois motivos.
O primeiro é que parte da direita secular não quer formar uma coalizão com a direita religiosa ultraortodoxa. Esse setor é liderado especialmente por Avigdor Lieberman, líder do Yisrael Beiteinu, com sete cadeiras, e esse tema já foi abordado aqui antes. O segundo é que parte dos partidos, de diferentes matizes políticas, não querem formar uma coalizão com Netanyahu, devido sua longevidade no poder e, principalmente, seus julgamentos por corrupção. Considerando que o Likud possui 30 assentos, um quarto do parlamento não quer sentar com outro quarto do parlamento, diminuindo muito as opções.
Naftali Bennett
Possível novo primeiro-ministro, o líder da aliança Yamina (“À Direita”) é uma figura bastante à direita, que flerta tanto com a direita nacionalista quanto com a direita ultraortodoxa. Foi ministro da Economia, da Diáspora, da Educação e, principalmente, da Defesa, o segundo cargo mais importante do país. Integrou o Likud, depois o Lar Judeu, um partido religioso, e hoje está no Nova Direita, secular. É uma figura com ideias muito próximas das de Netanyahu, tanto que integrou seu governo por sete anos.
Bennet, assim como Netanyahu, foi integrante da unidade de operações especiais Sayeret Matkal, que produziu outro primeiro-ministro, Ehud Barak. Bennet, assim como Netanyahu, fala com naturalidade de seu serviço militar e considera a criação de um Estado palestino como uma ameaça à segurança de Israel. Também como o atual premiê, Bennet não vê problemas nos assentamentos na Cisjordânia e, assim como Netanyahu, defende que o maior número de judeus possível migre para Israel, faça a aliyah.
O que explica, então, Bennet ser um possível líder de um governo que tire Netanyahu da cadeira que ocupa desde 2009? Ainda mais com o minguado número de sete cadeiras para o seu Yamina? Primeiro, os dois não teriam boas relações, apesar de visões parecidas. E também, bem, faro político. Oportunismo, dirão seus opositores. Ele sabe que, hoje, um governo sem Netanyahu não pode ser formado sem ele. E colocou seu preço: a cadeira máxima da chefia de governo, que ocuparia até metade de 2023.
Pelo acordo veiculado na imprensa, em meados de 2023 ele daria vez ao principal líder da oposição hoje, Yair Lapid. Líder do Yesh Atid, possui dezessete cadeiras, e era um dos líderes do Azul e Branco, que chegou muito perto de vencer Netanyahu nas duas eleições anteriores, em 2020 e em setembro de 2019. A aliança ruiu após outro dos líderes, Benny Gantz, ter aceitado um gabinete de “emergência nacional” para enfrentar a pandemia com Netanyahu. O ex-general foi ingênuo e acabou passado para trás no acordo.
Centro e esquerda
É Lapid que possui o atual mandato para formar o governo, e seu prazo se encerra na quarta-feira. Ele sim pode ser considerado um opositor de Netanyahu também no campo das ideias. É decididamente secular, um tema importante em Israel, defende o fim do que é visto como privilégio aos ultraortodoxos e também defende uma solução de dois Estados, desde que “garantida a segurança de Israel”. Em outras palavras, um Estado palestino administrativo, mas sem forças armadas próprias.
Ele ficaria com a pasta de Relações Exteriores enquanto espera sua vez de ocupar a cadeira de primeiro-ministro. Seria o preço do apoio de Bennet e também uma forma de fazer uma transição com menos ruptura. Lapid possui ótima oratória, herança de sua carreira de jornalista e de apresentador de televisão. Numa analogia bem-humorada, é como um William Bonner israelense. A ideia que Lapid busca passar é a de que a coalizão é, antes de tudo, para “limpar” a política da corrupção de Netanyahu.
Ou seja, ela não é necessariamente ideológica, é um “governo de unidade” para renovar o governo. Por isso, ele também fez acordos com o citado Lieberman e com Gideon Sa'ar, dissidência do Likud, ambos de direita, com o Azul e Branco, centro-direita de seu ex-aliado Benny Gantz, os trabalhistas de centro-esquerda e os verdes de esquerda. Pelo acordo, inclusive, Lieberman ficaria com a pasta de economia, o que já despertou protestos dos ultraortodoxos, não somente pela rivalidade entre ele e tais grupos.
Lieberman certamente cortará os fundos das escolas religiosas, priorizando o sistema de ensino público israelense. Em Israel praticamente não existem escolas particulares, o ensino público é a regra. As poucas escolas privadas são por serem de orientação religiosa, sejam ultraortodoxas ou cristãs, normalmente financiadas por comunidades dos EUA. Agora, mesmo somando todos esses partidos, Lapid teria 58 assentos. Faltam três para o número mágico. E aí a coisa fica mais interessante.
Netanyahu
Netanyahu não pode ser considerado carta fora do baralho, seja adorando ele, seja considerando-o uma figura nefasta. Primeiro, é uma raposa velha da política que não se tornou o premiê mais longevo de seu país à toa. É astuto e sabe como, e onde, cutucar. Segundo, é uma fera que luta por sua sobrevivência. Se não literalmente, politicamente. Perder seu cargo significaria perder sua imunidade, sujeito aos julgamentos de corrupção e também ao julgamento do público.
E como Netanyahu cutuca? Primeiro, acusa Bennett de cometer um “estelionato eleitoral”, de ter sido eleito numa base de direita nacionalista e trair seus eleitores para fazer uma coalizão com a esquerda. Para o premiê, Lapid não é centro, é esquerda. E não é mera acusação pública, retórica. Netanyahu trabalha com os parlamentares do próprio Yamina para desmobilizar o acordo e, segundo a imprensa israelense, já teria conseguido que ao menos um parlamentar “vire a casaca”.
Segundo, afirma que uma coalizão com a esquerda é uma ameaça à segurança de Israel, que seriam “moles” com o Hamas, que as recentes hostilidades mostrariam a necessidade de um governo forte. Junto com isso, a inexperiência de Lapid e a juventude de Bennett seriam agravantes dos riscos, e enfraqueceriam o país no exterior. O ministro do Interior e líder do ultraortodoxo Shas, Arye Deri, aliado de Netanyahu, chamou Bennett de “garotinho” que quer “brincar de ser primeiro-ministro”.
Terceiro, e principalmente, Netanyahu aponta que Lapid não possui o número mágico. Ou seja, para ser empossado, teria que contar ao menos com a abstenção de algum dos dois partidos árabes, a Lista Conjunta, liderada pelo árabe-israelense Ayman Odeh, ou a Lista Árabe, de Mansour Abbas, mais radical. E Netanyahu joga com a opinião pública de que isso seria traição, um risco, ou ambos. Novamente, o premiê israelense não nasceu ontem, luta por sua sobrevivência e possui a maior bancada do Knesset.
Solução?
Netanyahu conseguiria formar um governo? Difícil, tanto que teve a primeira chance e, dentro do prazo de um mês, não conseguiu viabilizar uma coalizão. Ele não pode abrir mão dos religiosos, mas isso significa, ao mesmo tempo, abrir mão de outra grande parcela do Knesset. O que ele pode conseguir é adiar, arrastar o processo decisório, convencer parlamentares individualmente, até o ponto em que o impasse é mantido e uma quinta eleição é convocada. Enquanto isso, ele permanece no cargo.
Caso Netanyahu fique de fora do cenário, isso poderia significar também um Likud renovado. Note-se que poderia, é apenas uma possibilidade, já que ele mantém rígido controle de sua legenda. Caso isso ocorra, teríamos um vácuo de liderança na direita israelense. E aí entra o faro de Bennett. Ele sabe que, sozinho, não conseguiria repor Netanyahu. Com ele fora, entretanto, ele emerge como um dos principais, e jovens, nomes da direita israelense. Aparentemente, Bennett também não é bobo.
E um governo de Lapid está longe, muito longe, de ser a solução para a crise política que assola Israel. Seria, como ele mesmo diz, um primeiro passo, o início de uma renovação. Uma coalizão tão vasta e diversa, entretanto, não sobreviveria por muito tempo, com todos buscando colher os espólios posteriores. Lieberman quer marcar terreno contra os ortodoxos, Gantz quer recuperar credibilidade, os trabalhistas querem voltar ao governo e os verdes desejam se recuperar de derrotas eleitorais recentes.
Também há o fato de que praticamente qualquer parlamentar dessa eventual coalizão de governo vai poder ser rotulado como um “vendido” ou algo que o valha por algum de seus eleitores, por se sentar à mesa com quem “não deveria”. Todos ali, de certa forma, também estão “pagando um preço” por um suposto objetivo maior, que é tirar Netanyahu do cargo. Forma-se o tal “governo de unidade”, que provavelmente durará apenas alguns meses. Depois, com a poeira assentada, novas eleições. Ou um novo Likud.