O Equador está em profunda crise social. O governo retirou todos os subsídios de combustíveis e impôs um Estado de emergência. Manifestantes tomaram as principais instalações de governo em Quito. O governo reagiu com um toque de recolher noturno e transferiu a sede de governo para Guayaquil, a cidade mais populosa e principal porto do país. O anúncio da transferência foi feito com o presidente Lenín Moreno cercado pelo alto comando militar. E é no presidente que residem questões importantes da crise.
Moreno é um pioneiro. Em uma tentativa de assalto, em 1998, foi baleado e ficou paraplégico. Desde então, tornou-se um dos mais importantes ativistas do mundo pelos direitos de pessoas com deficiência e com necessidades de acessibilidade, como ele, um cadeirante. Seu ativismo o levou à vice-presidência do Equador em 2007, posto que ocupou até 2013. Aumentou o orçamento para programas que atingem essas pessoas, promoveu leis e criou uma fundação que leva assistência aos países vizinhos.
O então vice-presidente chegou a ser cogitado para um Nobel da Paz. Em Abril de 2017, Lenín Moreno venceu o segundo turno das eleições presidenciais equatorianas. Tornou-se o primeiro presidente eleito, na História, com o público sabedor da sua condição de cadeirante; como já lembrado nesse espaço, Franklin Delano Roosevelt conseguia esconder sua condição de saúde do público, feito inimaginável em 2019, com câmeras por todos os lados. Moreno fazia História.
Moreno Presidente
E aqui começa uma trajetória que vai, em última instância, começar a minar parte de suas bases de apoio. Moreno foi vice-presidente de Rafael Correa, economista que governou por dez anos e é mais conhecido no Brasil como um aliado de Hugo Chávez, o que é verdade, mas não explica o fenômeno Rafael Correa dentro do Equador. Correa teve uma das maiores vitórias eleitorais do Equador, e o único candidato desde os anos 1970 que superou a divisão entre litoral e altiplano, vencendo em ambas as regiões, historicamente rivais.
Correa foi importante cabo eleitoral de Moreno, cuja vitória foi mais apertada. Em alguns meses no governo, Moreno começou a se distanciar de seu antecessor e de suas políticas. Com todo o direito, queria fazer o seu governo. E também não há nenhum problema em uma pessoa mudar de perspectivas, buscar caminhos diferentes dos que ela defendia antes. E muitos podem preferir o caminho adotado por Moreno nos últimos anos do que as medidas implementadas por Correa.
Dois caminhos adotados foram os mais estrondosos. Primeiro, no campo externo, Moreno buscou melhores relações com os EUA. Recebeu o vice-presidente Mike Pence e o secretário de Estado Mike Pompeo. Comprou armas e renovou acordos de cooperação militar. Revogou o asilo político de Julian Assange na embaixada equatoriana em Londres, abrindo caminho para uma possível extradição do jornalista, ativista, hacker, espião, uma gama de rótulos, para os EUA.
No campo interno, Moreno passou a buscar medidas austerizantes na economia. Redução de gastos públicos, esvaziamento de garantias trabalhistas, redução de impostos para investidores estrangeiros, dentre outros exemplos. O Equador estava em crise econômica. Os terremotos de 2016 custaram cerca de 3% do PIB do país. Até hoje a indústria do petróleo equatoriana não se recuperou totalmente dos sismos; o país é membro da OPEP, em situação suspensa pelo governo Moreno.
Equador em crise
Para reconstrução de infraestrutura e recuperação da economia, o Equador contraiu diversos empréstimos, totalizando cerca de dez bilhões de dólares, com Banco Mundial, FMI, dentre outros. Uma quantia que parece pequena para padrões da economia brasileira, mas representa 10% de todo o PIB equatoriano. A reestruturação fiscal equatoriana fez parte das condições de empréstimos, daí parte das políticas de Moreno. Um dos aspectos da reestruturação fiscal é o fim do subsídio aos combustíveis.
Ao contrário do que muito foi dito pela imprensa brasileira, essa não era uma política de Correa, mas de Estado, com cerca de quarenta anos de existência, desde o primeiro boom do petróleo no Equador. Na última semana, o preço dos combustíveis praticamente dobrou do dia pra noite; como se sabe, isso influencia em todos os preços de toda a cadeia de abastecimento. Foi o estopim dos protestos, que reúnem não apenas a pauta dos combustíveis, mas também pautas indígenas e sociais.
Moreno também realizou mudanças políticas e legais, todas elas amparadas pelo referendo de 2018, que trazia sete questões para o eleitorado, todas aprovadas. Iam desde a proibição de mineração em zonas protegidas ao fim da prescrição de crimes sexuais contra menores. Novamente, as mudanças de caminhos podem ser feitas, ao gosto e contragosto de cada um. Só que isso é política. As decisões, ou falta de, possuem custos políticos. Na adoção desses novos caminhos, Moreno entrou em crescente choque com Rafael Correa.
Agradar gregos e troianos
Consequentemente, em choque com boa parte de seu próprio eleitorado. Para a esquerda e os indígenas, virou de “traidor” pra baixo, acusado de estelionato eleitoral. Ao mesmo tempo, é visto com desconfiança pela direita equatoriana. Para esses, Moreno é um antigo aliado de Correa, o inimigo mortal. Não importa quais políticas econômicas ou reformas ele adote, ele sempre terá um carimbo na testa escrito “Rafael Correa”. Seu partido, o Alianza País, é inclusive membro do Foro de São Paulo.
Entre gregos e troianos, Moreno conseguiu desagradar quase todos. Seu índice de popularidade está abaixo de 30%, com algumas pesquisas colocando abaixo de 20%. E aí chega-se aos protestos atuais. Qual o capital político de Moreno para realizar uma reforma tão profunda, como a do fim dos subsídios de combustível, de maneira repentina? Absolutamente nenhum. É claro e cristalino que uma reforma dessas deveria ser realizada de forma gradual, com diminuições progressivas.
As acusações de intervenção da Venezuela ou de Rafael Correa, exilado na Bélgica por causa de um mandado de prisão, não fazem sentido quando se olha para o próprio cenário equatoriano. Nada disso aconteceria sem as ações do próprio Moreno. A Venezuela chega a acusar que o próprio Moreno, sabedor de sua fragilidade política, quis criar uma situação radical para poder aumentar a repressão dos protestos que já ocorriam. No mínimo, o estopim dos protestos foi uma ação mal calculada de um presidente isolado.
Polícia isola prédio do STF após explosão de artefatos na Praça dos Três Poderes
Congresso reage e articula para esvaziar PEC de Lula para segurança pública
Lula tenta conter implosão do governo em meio ao embate sobre corte de gastos
A novela do corte de gastos e a crise no governo Lula; ouça o podcast