Príncipe herdeiro de Abu Dhabi, Mohamed bin Zayed al-Nahyan, caminhando ao lado do presidente do Iêmen, Abedrabbo Mansour Hadi, e do príncipe herdeiro saudita Mohammed bin Salman| Foto: Divulgação/Ministério de Assuntos Presidenciais dos Emirados Árabes Unidos / AFP
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A semana que mal começa deveria contar com uma cúpula da Liga Árabe, mas o encontro foi adiado por prudência, devido aos riscos da pandemia de Covid-19. Habitualmente, na imprensa que cobre pautas internacionais, haveria ao menos algum interesse em eventuais soluções encontradas ou quais os prejuízos do adiamento. Por exemplo, a próxima cúpula do G-7, em junho nos EUA, foi transformada em videoconferência, também por prudência frente ao vírus. No caso da Liga Árabe, a atenção para o tema foi mínima, quase como se dizendo: qual a importância da Liga Árabe hoje?

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Mais curioso ainda, a cúpula adiada seria a do jubileu de setenta e cinco anos da organização. Fundada em Março de 1945, no Cairo, por Egito, Iraque, Líbano, Arábia Saudita, Síria, Iêmen e a Transjordânia, atual reino da Jordânia, seus integrantes acordaram em buscar uma “estreita cooperação” em aspectos econômicos, culturais, sociais e de “nacionalidade”. Ou seja, a premissa de que todos os países árabes compartilham um legado nacional em comum: o idioma, a poesia, a música, tradições e também outros aspectos étnicos, como a origem semita dos povos árabes.

Pan-arabismo

Esse é ao mesmo tempo um pilar fundador e motivo de discórdia entre os membros da Liga. De um lado estão os pan-árabes, cujo maior nome será o do egípcio Gamal Abdel Nasser. Para esses, os árabes são uma única nação que está dividida entre vários Estados. O poeta árabe libanês Khalil Gibran lamentou isso da seguinte forma: “triste é a Nação dividida em fragmentos, cada fragmento considerando-se uma Nação.”. Um pensamento similar aos outros dos outros movimentos pan-nacionais da virada dos séculos XIX para o XX, como o pan-eslavismo e o iugoslavismo.

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A Liga Árabe seria então uma ferramenta de transição, uma maneira de progressivamente integrar os diferentes Estados árabes até a total integração, a Arábia. Esse propósito faz ainda mais sentido quando observa-se o período da formação da Liga, o imediato pós-Segunda Guerra, com a consequente descolonização e processos de independência. Os Estados árabes eram ou recém-formados, nos escombros otomanos da Grande Guerra, ou em processo de formação, como Síria, Sudão e Líbia. Estados ainda frágeis que, se unindo, teriam maior poder de barganha na nova ordem internacional.

Opostos aos pan-arabistas estão os por vezes chamados pejorativamente de “tribalistas”, alas mais tradicionalistas, habitualmente ligadas aos setores religiosos e, especialmente, às famílias reais árabes. Importante lembrar que países como a Arábia Saudita, o Qatar e os Emirados Árabes Unidos são praticamente grandes propriedades privadas das famílias que os governam. Ou seja, o triunfo do pan-arabismo significaria a perda do poder político e dos privilégios econômicos dessas famílias. Adotam então uma política de que o pan-arabismo seria mais um elo cultural, não necessariamente político.

Essa cisão é quase uma versão contemporânea de disputas de poder que já duram séculos, entre os árabes “do deserto” e os “cosmopolitas”. Os primeiros são os mercadores da península arábica, os emires da região do Golfo Pérsico, os clérigos ligados às cidades sagradas. Os segundos são as elites intelectuais e mercantis dos grandes centros urbanos, como Bagdá, Damasco e Cairo. Finalmente, uma terceira corrente ganhou força graças aos sauditas na década de 1970, o pan-arabismo religioso, por vezes chamado de forma simplista de pan-Islamismo.

Guerra Fria

O pan-arabismo da descolonização tornou-se uma corrente desenvolvimentista e secular, com muitos países adeptos dessa bandeira tornando-se, em diferentes escalas, próximos da URSS. As lideranças religiosas, especialmente sauditas, viam o socialismo e o secularismo como a maior ameaça possível e, para conter essas ideias, financiam e difundem ideias religiosas fundamentalistas. Principalmente sauditas, Paquistão e os Emirados Árabes Unidos, com apoio direto ou indireto dos EUA, um momento da História já foi abordado algumas vezes aqui nesse espaço.

Osama bin-Laden e o Talibã não foram “efeitos colaterais” dessa política da Guerra Fria, eram exatamente os produtos desejados. Para o pan-arabismo religioso, o fator de unidade, acima da língua e dos costumes, deve ser a religião, o Islã, essencialmente o Islã sunita. Importante lembrar que existem milhões de árabes cristãos, sem contar os cristãos coptas egípcios e os cristãos maronitas, que não se identificam como árabes. Principalmente, é uma corrente de pensamento que acaba privilegiando essencialmente os sauditas como centro do mundo islâmico, por causa das cidades sagradas.

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Desde a fundação, a Liga Árabe tomou passos conhecidos, alguns celebrados, outros infames. Se inicialmente seus integrantes renunciaram à violência como um meio de resolver conflitos entre os membros, isso não se provou de sucesso, com meia dúzia de guerras entre integrantes da Liga. A posição perante Israel também mudou parcialmente e as ameaças de isolar os membros que estabelecessem relações com o “inimigo sionista” ficaram na retórica; Egito e Jordânia continuam sendo países de peso dentre os países árabes, embora tenham relações com Israel.

Século XXI

Nas duas últimas décadas, a Liga Árabe tentou abordagens mais “pragmáticas” para seus projetos, fortalecendo comércio e cooperação em defesa, resgatando acordos da década de 1950. Daí a principal presença da Liga Árabe no noticiário brasileiro nos últimos tempos: a promessa de um boicote comercial concertado aos países que reconhecerem Jerusalém como capital de Israel. Claro que essa ameaça teria muito mais peso caso os membros da Liga tivessem rompido com os EUA; ou seja, mesmo sendo uma ameaça crível ao Brasil, ainda acaba sendo fruto de retórica para consumo interno.

Se o sonho pan-árabe tivesse sido bem-sucedido e o que hoje é a Liga Árabe fosse um único Estado, seria a quinta economia do mundo, o segundo maior país do mundo e a terceira população mundial; os países árabes somam regiões extremamente populosas, como a metrópole do Cairo, com regiões desérticas de baixíssima densidade populacional. Claro que esse não pode ser o parâmetro, seria algo ambicioso demais para apenas setenta e cinco anos. De qualquer maneira, parâmetros mais objetivos podem ser usados para tentar responder: qual a função da Liga Árabe hoje?

O nacionalismo pan-árabe está em baixa e, em alguns países, é visto como uma ideologia manchada pelas derrotas contra Israel. Os países estão em ebulição interna, como a Argélia, em crise econômica, como o Egito, mal possuem instituições independentes, como no Golfo Pérsico, ou estão dilacerados por guerras e violência sectária, como Líbia, Síria e Iraque. Cada um com suas prioridades e pouca concórdia na Liga; mesmo o Irã serve de inimigo em comum apenas até a página dois. Poucos sentiram falta da cúpula desta semana pois ela pouco significaria. Um desanimador aniversário de setenta e cinco anos.