Na última quinta-feira, 16 de julho, o procurador-geral dos EUA, William Barr, criticou diversas grandes empresas dos EUA por terem laços com a China. De um ponto de vista estratégico de longo prazo, ele está correto em seus apontamentos. Numa perspectiva econômica, entretanto, há uma possível contradição. Mais interessante, as palavras de Barr mostram a grande diferença entre o que acontece hoje entre China e EUA e o período que chamamos de Guerra Fria.
Dentre suas palavras estão declarações como "as grandes empresas de tecnologia americanas se permitiram e agora são peões de influência chinesa" e "os iPhones da Apple não poderiam ser vendidos na China se isso significa que eles precisam ser vulneráveis à penetração das autoridades chinesas. Não pode haver um peso e duas medidas. Os valores precisam ser os mesmos globalmente". No aspecto estratégico, de um confronto entre Estados, ele tem razão.
Nesse raciocínio, a disputa entre os atores torna-se um jogo de soma zero. Ou seja, para um ganhar, o outro precisa perder. No caso, a tecnologia que uma empresa dos EUA desenvolve vai parar com o "inimigo" chinês e deixa de ser uma vantagem. Ou então, o fato de uma empresa de tecnologia permitir diferentes acessos de acordo com o ator envolvido. O benefício de um significa, necessariamente, o prejuízo do outro.
Maiores empresas e maior mercado
Essas declarações de Barr são das que parecem mais tranquilas, podem soar mais um capítulo de um novo macartismo, mas, no fundo, são das mais reveladoras. Mostram como o atual governo dos EUA encara as relações com a China. Relações que devem ser controladas, gerenciadas e até amenizadas. E isso não é mero detalhe. Primeiro, pelas cifras envolvidas, já que, apenas comercialmente, trata-se de uma relação de mais de 700 bilhões de dólares.
É como se toda a riqueza produzida pela Suíça no ano fosse comercializada entre os dois países. Outro aspecto importantíssimo é que, de um lado do Pacífico, estão algumas das maiores empresas e marcas do mundo. Do outro, na China, está o maior mercado do mundo. Como, em um sistema capitalista, querer impedir que tais empresas acessem esse mercado? Nesse sentido, Barr deu outro exemplo: "Hollywood rotineiramente cedeu à pressão e censurou seus filmes para apaziguar o Partido Comunista Chinês".
Um caso que gerou bastante repercussão foi o do filme Doutor Estranho, de 2016. Um filme simples, de super-herói, entretenimento do tipo que diverte e engaja fãs, nenhum grande drama. Qualquer filme para ser exibido na China precisa ser aprovados pela Administração de Imprensa, Publicações, Rádio, Filmes e Televisão, um órgão do governo chinês que verifica se materiais são "apropriados", sem representar a China, seu governo e sua população de forma negativa. Ou seja, censura.
No filme, há a personagem da Anciã, interpretada por Tilda Swinton como uma figura de "origem celta". Já o personagem Ancião original dos quadrinhos nasceu em um lugar no centro do Himalaia e era o Alto Lama de sua cultura. Em outras palavras, o Ancião "clássico" é de origem tibetana. Por conta dos questionamentos sobre a posse chinesa do Tibete, Pequim não admite menções ao Tibete independente ou à sua cultura, considerando isso uma ameaça nacional. O próprio roteirista do filme, C. Robert Cargill, não gostou de ter que fazer essas mudanças.
Ao final das contas, o filme faturou 677 milhões de dólares nas bilheterias, mais de três vezes mais seu orçamento. Dezesseis por cento desse dinheiro veio do mercado chinês. E este não é o único exemplo. Do mesmo universo Marvel, o filme Homem de Ferro 3 mudou a origem do vilão Mandarim para não ofender a censura chinesa. Também da Marvel, uma propriedade Disney, o filme Vingadores: Ultimato, a maior bilheteria da história do cinema se desconsiderada a inflação, arrecadou 2,8 bilhões de dólares.
O montante é quase oito vezes seu orçamento original, um belíssimo retorno de investimento. Do faturamento, quase um quarto veio do mercado chinês. Como uma empresa vai desprezar um mercado que lhe rendeu quase 650 milhões de dólares em um único filme? Ficando atrás apenas do mercado doméstico dos EUA? Quando Barr fala que "empresas mostraram-se dispostas a colaborar demais com Partido Comunista Chinês", ele não oferece uma alternativa para essa contradição. As empresas não estão interessadas em colaborar mais ou menos com um partido, elas querem acessar um mercado gigantesco.
É lucro. Colaborar com o governo chinês e seu partido comunista, para essas empresas, é pagar um pedágio, não uma aliança ideológica ou simpatia moral. Pode-se ter um ótimo e longo debate sobre a relação entre lucro e moralidade, mas dificilmente vai mudar a postura dessas empresas. Ao menos enquanto não houver alternativa. E nada disso é novo, também. A primeira Guerra do Ópio, 180 anos atrás, já mostra como o enorme mercado chinês motiva a realização de negócios imorais.
Guerra Fria
Finalmente, essas declarações mostram como a situação entre EUA e China é diferente. Seus elementos geopolíticos remetem ao século XIX, um tabuleiro de xadrez que começou entre Reino Unido e o império russo, tornou-se entre EUA e URSS e hoje, progressivamente, vira um choque entre EUA e China. As lições que a História tenta ensinar, mesmo aos ouvidos moucos, não comportam um aspecto dessa relação entre Washington e Pequim. A tensão somada com a interdependência.
Além de uma clivagem ideológica mais acentuada, a Guerra Fria nunca foi um período em que as duas superpotências tivessem profundos laços econômicos ou comerciais. A Rússia, de fato, nunca foi um grande centro comercial global. O gigantismo territorial faz o comércio russo ocorrer principalmente por terra, com vizinhos. Cenário agravado pela falta de um porto oceânico em águas quentes, o grande calcanhar de Aquiles russo primeiro diagnosticado por Pedro, o Grande.
Pela maior parte de sua História, o mercado soviético também não era aberto para o consumo de importações, salvo nos anos finais, sob Gorbachev. O auge do comércio entre as duas superpotências foi em 1989, um volume total de quatro bilhões de dólares. Literalmente, três dias do volume de comércio entre EUA e China. Tudo isso mostra que a URSS era o contrário da China de hoje: uma potência comercial, grande consumidora de commodities e maior mercado consumidor do mundo.
As fronteiras entre o mundo dos EUA e o mundo soviético eram visíveis, explícitas. Já as linhas entre EUA e a China são emaranhadas, mescladas. Estão competindo pelos mesmos mercados, pelas mesmas licitações. As empresas de um querem vender para os cidadãos do outro. Mais do que querem, talvez precisem. Isso torna o cenário atual não apenas diferente da Guerra Fria, mas mais arriscado. O crescente rompimento criará contradições e prejuízos. Eles podem ser resolvidos uma vez, duas vezes, dez vezes, mas, em algum momento, o acúmulo de problemas econômicos pode ser uma bomba relógio como nunca existiu na velha Guerra Fria.