A morte do general iraniano Qasem Soleimani em um ataque aéreo dos EUA em solo iraquiano justifica a interrupção da série de textos sobre os temas da política internacional em 2020. Tratava-se de um dos homens mais poderosos do Irã, senão sua principal figura; em termos militares e de inteligência, sem dúvida o era. Sua morte afeta diretamente as atuais relações no Oriente Médio, gera complicações, motiva muitas perguntas e poucas respostas imediatas.
O contexto
Curiosamente, o mais recente texto nessa coluna grafava que “o Iraque está cada vez mais próximo de uma guerra civil deflagrada, e recentes ataques aéreos dos EUA contra alvos dentro do Iraque tornaram-se mais um ingrediente nesse caldeirão". A morte de Soleimani é um misto de assassinato excepcional com um conflito amplo e estabelecido. Esse tipo de ataque de decapitação, eliminando lideranças inimigas, não é novidade; exemplo desse ato pelos EUA é a morte do almirante Yamamoto, em 1943.
O conflito amplo citado é dividido em dois braços que se complementam. Primeiro, a política dos EUA de deter o Irã pós-1979. Soma-se a briga por influência geopolítica, econômica e ideológica no Oriente Médio, entre iranianos e sauditas, aliados dos EUA. Essa Guerra Fria regional entre as duas potências foi extensivamente abordada aqui nesse espaço, numa série de textos chamada "Quem é quem na guerra fria do Oriente Médio?”. Fica a recomendação da leitura, inclusive por uma questão prática nesta coluna.
Um foco especial desse conflito é o Iraque, por sua posição geográfica, separando sauditas e iranianos; por sua composição demográfica, com comunidades sunitas e xiitas, além de outras minorias; por sua importância econômica, com grandes reservas de petróleo; e pelo fato de, desde 2003, ser um Estado em frangalhos, com nenhum governo estabelecido de forma duradoura e com ampla legitimidade. E o cabo de guerra entre sauditas e iranianos pela alma do Iraque está rasgando o próprio país.
O Iraque está na beira do precipício de mais uma guerra civil, um tema também abordado nesse espaço, em coluna anterior. O texto cita nominalmente a influência do general Qasem Soleimani no país, como articulador das diversas forças xiitas pró-Irã. Essa é a importância de Soleimani; quer dizer, era. Responsável pela inteligência da Guarda Revolucionária Iraniana (GRI), a Força Quds, Soleimani coordenava todas as forças pró-Irã nos diferentes teatros da guerra fria regional.
Foi ele que articulou a operação russa na Síria, para manter Assad no poder, forneceu equipamentos e treinamento aos houthis do Iêmen, arregimentou os diversos grupos iraquianos em uma frente coesa e transformou as relações entre Irã e o Hezbollah em uma parceria que transbordou as fronteiras do Líbano, presentes hoje na Síria e no Iraque. Inclusive, no ataque que matou Soleimani, também foi morto Abu Mahdi al-Muhandis, líder do “Hezbollah iraquiano”.
Em outras palavras, Soleimani era o jogador de xadrez iraniano no tabuleiro geopolítico do Oriente Médio. Ele que formulou as principais estratégias dos últimos anos, incluindo a virada na guerra na Síria e a luta iraquiana contra o Daesh (autointitulado Estado Islâmico). Estabeleceu uma ampla rede de aliados e de agentes, agindo por vezes de maneira pragmática, por vezes rompendo a barreira do sectarismo; por exemplo, estabelecendo relações com o Hamas, grupo sunita que compartilha Israel como inimigo.
Como citado, ele era uma das figuras mais poderosas do Irã, articulador de suas estratégias. Ele tinha sangue nas mãos, mas não se trata da morte de um "terrorista" como a morte de al-Baghdadi. Embora a Força Quds e a GRI sejam designadas como terroristas pelo governo dos EUA, Soleimani não era um pária internacional. Sua morte é um evento global. Afeta a relação do Estado iraniano com outros Estados e entidades intraestatais, e também pode motivar críticas mais íntimas à operação dos EUA, como já ocorrem.
As perguntas
Se for para fazer uma analogia, seria como o Irã realizando um ataque para matar Mike Pompeo, Secretário de Estado e ex-diretor da CIA. E no solo de outro país, violando a soberania iraquiana; na prática, entretanto, convenhamos, essa soberania é uma fantasia. De qualquer maneira, congressistas dos EUA já estão questionando a ação tomada pelo governo, se ela não seria ilegal ou se o próprio Congresso não deveria ter sido notificado, talvez até consultado.
Pouco após as notícias do ataque, o Pentágono emitiu uma nota dizendo que Trump diretamente ordenou o ataque. Chega-se na pergunta: pode complicar a situação de impeachment de Donald Trump? Dificilmente. Nenhum político dos EUA vai conseguir articular o suficiente para jogar presidente na fogueira por um general iraniano, por mais importante que ele fosse. Como a nota do Pentágono diz, a Força Quds foi responsável por “centenas de mortes” de cidadãos dos EUA, o que é verdade.
Além disso, Soleimani estaria “articulando para atacar as representações” dos EUA pelo Oriente Médio, como recentemente ocorreu no assalto à embaixada em Bagdá, o provável motivador do ataque. Outro aspecto que diminui as chances de sucesso de denúncias internas é que a nota foi bem cuidadosa em lembrar Suleimani como líder de uma organização designada como terrorista pelo governo dos EUA, embora pouquíssimos países sigam essa classificação. Isso não quer dizer que Trump não corre riscos.
A próxima pergunta é: quais os impactos nas eleições? Trump não possui uma estratégia definida e de longo prazo para o Oriente Médio; sendo justo, isso não é exclusividade dele. A região não permite abordagens imediatistas, que caibam em um mandato de quatro anos. O Oriente Médio é encantador justamente por ser extremamente complexo, com culturas milenares e interesses globais envolvidos. Um potencial conflito não colabora com os planos eleitorais de Trump; ao contrário, vão de encontro com suas promessas.
A ação tomada será classificada de inconsequente ou prejudicial ao país por seus adversários políticos e, mesmo que não tenham consequências legais, podem ter consequências eleitorais. Novamente, não se trata de um pária como bin Laden, cuja cabeça serviu de trunfo eleitoral para Obama. Pode-se cogitar que essa ação foi tomada para desviar o foco do impeachment e das eleições, mas é importante ter em mente que essa estratégia pode sair pela culatra.
Chega-se em outra pergunta. A importância de Soleimani era tamanha, e o medo da desestabilização causada por sua morte, que, por duas vezes, o governo dos EUA barrou o governo israelense de matá-lo; uma no governo George W. Bush e outra no governo Obama, focado em negociar o acordo nuclear. E se a morte de Soleimani não foi intencional? Não se trata de questionar a capacidade dos EUA ou de Israel de eliminar um alvo, mas de especular todos os cenários possíveis.
Havia um alvo ali, Abu Mahdi al-Muhandis. Um ataque, digamos, proporcional em retaliação à invasão da embaixada dos EUA em Bagdá. E se, por coincidência, Soleimani estava no mesmo comboio de veículos? Abrindo um leque de possibilidades que não podem ser previstas, tampouco desejadas, pelo governo dos EUA? Não seria a primeira vez que uma coincidência ou um acidente desempenham um papel nas relações entre países. Repete-se que isso é apenas uma especulação, mas o timing da morte motiva-a.
As consequências
É difícil cravar todas as consequências possíveis nesse momento e o alarmismo é inimigo da racionalidade. Algumas, entretanto, são visíveis. A primeira é que existe um prejuízo considerável para os esforços iranianos e seu aparato de Estado. Não é um nome facilmente substituível, e as relações entre o Irã e seus até agora aliados regionais pode ser fragilizada ou até mesmo entrar em colapso. Trata-se de consertar uma vasta rede de contatos, criada pelo próprio Soleimani. O Irã vai demorar para se recuperar, se conseguir.
Segundo, digamos adeus ao acordo nuclear. Se ele já estava praticamente morto, com apenas as potências europeias tentando salvá-lo, agora ele está enterrado. A linha-dura iraniana ganhará mais força politicamente, e as eleições vindouras no Irã provavelmente refletirão isso. Soleimani era um herói nacional, um veterano da guerra Irã-Iraque. Essa é a terceira consequência. O Irã agora tem um mártir de peso inigualável, um símbolo nacional de herói morto na luta contra os EUA e seus aliados sauditas e “os sionistas”.
Ele certamente receberá um funeral de acordo com essa imagem de herói, e as redes iranianas já exibem programação focada em sua morte, com fotos e preces. Finalmente, a certeza de retaliações iranianas. Essas retaliações podem ir de ações localizadas até ataques em larga escala. Uma guerra entre EUA e Irã não é tão simples assim, como já explicado aqui nesse espaço, mas é impossível de ser descartada; mais possíveis são guerras civis deflagradas no Iraque ou no Líbano, ou em ambos.
Essa certeza abre um novo e vasto leque de perguntas, mas que serão respondidas pelos fatos. Por exemplo, qual será o papel da Rússia, aliada do Irã na Síria, nessa crise. O chanceler iraniano Javad Zarif acusou os EUA de terrorismo e declarou que o país “carrega toda a responsabilidade por todas as consequências desse comportamento aventureiro trapaceiro”. Lideranças xiitas iraquianas já “convocaram soldados” contra os EUA, e ameaçaram expor os dados pessoais de todas as lideranças iraquianas que não os apoiem.
Se os EUA são um alvo difícil, seus cidadãos e seus amigos podem ser os alvos, e a guerra assimétrica pode ser a ferramenta. O Hezbollah possui células em diversas regiões do globo, incluindo a América Latina; Soleimani teve envolvimento no infame atentado da AMIA, em Buenos Aires, que matou 85 pessoas em 1994. Toda e qualquer representação dos EUA pelo mundo é um alvo possível, assim como são possíveis operações de ciberguerra. Outro alvo em potencial é Israel, o que não é exatamente uma novidade.
A incerteza de qual será a resposta é, inclusive, parte da resposta. A sensação de insegurança não vai dissipar tão cedo. O tempo das ações iranianas é diferente do tempo das redes sociais; serão três dias de luto nacional por um mártir, enquanto respostas são gestadas e ânimos incentivados. Enquanto isso, sunitas iraquianos celebram a morte de Soleimani. Nada é tão simples, mas, para terminar essa coluna com uma recomendação mais objetiva: fiquem de olho no preço do petróleo e abasteçam seus veículos.