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Filipe Figueiredo

Filipe Figueiredo

Explicações para os principais acontecimentos da política internacional

Pandemia

A negligência com o novo coronavírus e as diversas faces de Israel

Judeus ultraortodoxos mergulham utensílios de cozinha em água fervente para purificá-los, em preparação antes da Pessach, feriado que celebra a libertação dos hebreus da escravidão no Egito. Jerusalém, 8 de abril de 2020 (Foto: MENAHEM KAHANA / AFP)

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Israel é um tema que, ano após ano, chama mais a atenção dos brasileiros. Seja por questões políticas, com o conflito com a Palestina, por presença no noticiário, como a questão de Israel, ou por motivos religiosos e culturais. Nesse último aspecto é significativo o interesse motivado por questões ideológicas em alguns setores neopentecostais. A bandeira do Estado de Israel tornou-se presença cativa na conhecida Marcha Para Jesus, por exemplo. É importante ter noção, entretanto, de que algumas visões romantizadas ou muito passionais são superficiais, e o modo como o novo coronavírus está sendo encarado contribui para mostrar a variedade da sociedade israelense.

Ainda no início de fevereiro, Israel já havia suspendido voos chegando da China, de Hong Kong, de Macau, da Tailândia e de Singapura. O primeiro caso em Israel foi confirmado no dia 21 de fevereiro. Na semana seguinte, voos do Japão e da Coreia do Sul foram proibidos e o governo pediu a suspensão de todas as viagens não essenciais. No mesmo período, qualquer pessoa suspeita de estar infectada foi colocada em isolamento por duas semanas. Já no dia 3 de março uma escola com mais de mil alunos foi temporariamente fechada, já que dois casos foram de estudantes locais. No dia 9 do mesmo mês, toda pessoa chegando do estrangeiro deveria ficar confinada.

Providências

Alguns dos leitores mais atentos talvez se lembrem de que foi o período da mais recente eleição do país. As providências foram mantidas e os mais de cinco mil eleitores confinados puderam votar em cabines isoladas. Ainda no dia 12 de março, o governo determinou o fechamento das escolas e das universidades; no dia 15, proibiu reuniões de mais de dez pessoas; no dia 16, o Ministério da Saúde autorizou tratamentos experimentais contra o novo vírus. No dia seguinte, o parlamento autorizou que o Shin Bet, o serviço interno de inteligência, monitorasse os celulares dos infectados e dos confinados, para garantir que estavam cumprindo as exigências.

Foi quando o vídeo de um homem violando o isolamento sendo detido por policiais em roupa protetora viralizou nas redes sociais. No dia 25 de março foi a vez de medidas ainda mais rígidas, incluindo multas, depois de um sábado movimentado nas praias e parques. E tudo isso foi feito junto com suspensões de viagens, dispensa de funcionários, diminuição do ritmo da economia, o governo pagando pensões para pessoas que estão temporariamente desempregadas; no último dia 30, o governo do premiê Benjamin Netanyahu anunciou um pacote econômico de mais de 22 bilhões de dólares, cerca de 6% do PIB total do país.

No dia 18 de março, o Ministério da Defesa assumiu a coordenação da compra de equipamento e materiais em relação à pandemia. O conhecido Mossad, o serviço de inteligência externa de Israel, tema desde teorias da conspiração até debates sérios, providenciou cem mil testes rápidos em algumas horas e mais de um milhão em alguns dias, equivalente para testar mais de 10% de toda a população do país. O governo, na última semana, assegurou um grande carregamento de hidroxicloroquina da Índia, país polo de produção química mundial. A droga, prescrita para malária, lúpus e artrite, tem sido estudada como tratamento contra o novo coronavírus.

Mesmo tomando todas essas medidas, Israel passa por um crescimento de casos do novo coronavírus. Mesmo em uma curva menos acentuada do que o Brasil ou os EUA, a situação ainda assim é preocupante. E o quê explica isso? De um lado, temos um vasto complexo técnico-científico em Israel tomando providências para lidar com a pandemia, herança da fundação secular do país. Um amplo sistema público de educação primária e secundária, com nove universidades públicas e diversos laboratórios também com financiamento público. Um deles, o Migal, anunciou que em breve testará uma vacina contra o novo coronavírus, "adaptada" de uma vacina já existente.

Junto com esse sistema educacional, Israel conta com robusto sistema público de saúde, considerado um dos melhores do mundo. Cada cidadão israelense precisa ser associado a um dos quatro fundos de saúde estatais; caso deseje, também pode ter um plano de saúde privado, que é o caso de apenas cerca de um quarto da população. Muitos hospitais privados são gerenciados por organizações de caridade ou não-lucrativas, cenário similar ao brasileiro. A junção dos sistemas de ensino e do sistema de saúde faz com que Israel desempenhe papel importante em pesquisa médica, de biotecnologia, farmacologia e também pesquisas com células tronco.

Aqui as visões começam a migrar. Quando se pensa em pesquisas com células tronco, muitos pensam na relação do tema com o aborto de gestação, que é legalizado em Israel desde 1978. O procedimento de aborto de gestação é inclusive coberto pela saúde pública. Cerca de trinta mil abortos de gestação são realizados todo ano. Israel também é polo de pesquisa de usos medicinais da maconha, com a cannabis medicinal legalizada desde a década de 1990. Dois aspectos da sociedade secular israelense que podem chocar muitos desse lado do Atlântico. Se quisermos ir além, o casamento entre pessoas do mesmo sexo é reconhecido e as leis sobre armamento civil são rígidas.

O ministro ultraortodoxo

Convivendo com essa sociedade israelense secular, com um Estado social e leis consideradas progressistas por muitos, está uma sociedade israelense extremamente religiosa e reclusa. Entre 20 e 30% da população de Israel se identifica como muito religiosa, sendo que 12% da população se identificam como ultraortodoxos, ou haredi. Nas últimas décadas, esses grupos têm se tornado politicamente ativos, com os partidos ortodoxos compondo a base da governo de Netanyahu, como exposto diversas vezes aqui nesse espaço. Um desses partidos ortodoxos é o Judaísmo Unido da Torá, cujo líder é Yaakov Litzman, de orientação hassídica.

O nome talvez seja familiar pois Litzman é o atual Ministro da Saúde de Israel, cargo que ocupou entre 2009 e 2013 e desde 2015. O interesse dos ortodoxos no ministério está ligado à saúde reprodutiva e direitos LGBT, questões de ordem moral e religiosa, sem relação com a gestão de saúde pública. E sua maneira de lidar com a pandemia gerou uma queda de braço com os seculares e gestores hospitalares. No dia 29 de março, dezenas desses escreveram uma carta para os dois principais líderes partidários do parlamento, Netanyahu e Benny Gantz, pedindo para o ministro ser substituído por um profissional. Como já citado, foi o Ministério da Defesa que capitaneou os preparativos de saúde.

Litzman foi no sentido contrário, inclusive. No dia 19 de março, em uma entrevista, disse que "Estou certo de que o Messias virá até a Páscoa e nos salvará da mesma maneira que Deus nos salvou durante o êxodo e fomos libertados. O messias virá e salvará todos nós". Ele disse isso em resposta a uma pergunta sobre um confinamento de Páscoa, rejeitando a medida; detalhe é que a medida foi adotada. No dia 2 de abril, Litzman e sua esposa foram diagnosticados com o novo coronavírus e ele foi conduzido ao isolamento. Três dias depois, ele violou o isolamento, sendo visto em uma sinagoga. E esse comportamento não é isolado. Na verdade, é comum e acaba fortalecido quando um ministro age assim.

Quando comenta-se que os casos em Israel estão em ascensão, é importante colocar um aspecto em contexto. O país tem, hoje, dez mil casos confirmados. Desses, 60% são da comunidade ultraortodoxa, sendo que eles são apenas 12% da população. Dos 1.442 casos em Jerusalém, 1.068 são ultraortodoxos, 74%. Isso é resultado não somente do comportamento negligente do ministro, mas também de outros fatores culturais. Menos velocidade de informação, já que muitos não usam a internet; famílias grandes, vivendo em espaços reduzidos; o descumprimento de medidas de distanciamento e o contínuo funcionamento de escolas religiosas e de sinagogas, dentre outros.

No dia 3 de abril foi determinado o fechamento da cidade de Bnei Brak, subúrbio na cercania de Tel-Aviv, uma cidade com 90% da população ultraortodoxa. Em uma nota pessoal, um local onde um estrangeiro passear na calçada desperta eventuais olhares de curiosidade, ainda mais de bermuda. Dos cerca de 200 mil habitantes, em uma das cidades mais densamente populosas do mundo, até 38% podem estar infectados sem terem sido testados. Apenas funcionários de serviços essenciais podem entrar e sair da cidade, e com autorização do governo. Uma medida drástica, mas, segundo o governo, necessária, para evitar que a Páscoa acabe servindo para o espalhar do vírus.

Rua da cidade de Bnei Brak, Israel, durante a pandemia do novo coronavírus, 3 de abril de 2020. Grande parte da população da cidade israelense contraiu covid-19 (Foto: JACK GUEZ / AFP)

No dia 5 de abril, o presidente Reuven Rivlin precisou pedir paz e fraternidade aos seus cidadãos, já que os seculares acusam os ultraortodoxos de não seguirem as orientações de saúde pública e causarem prejuízos ao sistema de saúde. É a segunda vez em pouco tempo que a população ultraortodoxa torna-se o centro das atenções em Israel. Primeiro, o debate sobre o serviço militar ortodoxo, no centro de três eleições em um ano. Um lembrete de que Israel não é uma coisa monolítica ou profética, mas uma sociedade complexa com   diversas faces, desde os comunistas seculares dos primeiros kibutz até os haredim que vivem em Jerusalém por séculos.

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