O Níger tornou-se o mais recente país do Sahel a passar por um golpe militar, no que pode se tornar mais uma disputa por influência entre Rússia e França. Integrantes da guarda presidencial do país anunciaram a prisão do mandatário nigerense, o presidente deposto o presidente Mohamed Bazoum. Caso o país dê uma guinada completa em sua política externa, tal qual alguns de seus vizinhos, as consequências serão sentidas também em algumas das principais potências do mundo.
O estopim do golpe foi a intenção pelo presidente Bazoum de demitir o general Omar Tchiani, comandante da guarda presidencial, a única unidade militar do Níger que é integrada apenas por militares profissionais, já que as forças armadas do país, uma das mais pobres do mundo, contam principalmente com conscritos. O general Tchiani ocupa o posto desde 2015 e teria sido ele o garantidor da posse de Bazoum, que sucedeu o presidente Mahamadou Issoufou em 2021, após dois mandatos.
Foi a primeira transição democrática da história do Níger, independente desde 1960. O país passou por quatro golpes militares concretizados, além de meia dúzia de tentativas de golpes de Estado. Em um primeiro momento foi especulado que poderia haver um racha dentro das forças armadas nigerenses, entre golpistas e legalistas. Se essa divisão existiu, ela foi rapidamente resolvida e dissipada, com um pronunciamento televisionado do golpe pelo comandante da força aérea local.
No pronunciamento estão presentes representantes de todas as forças e da polícia nacional. O golpe foi justificado "devido à deterioração da situação de segurança e má governança” do país. Também foi anunciada a dissolução da constituição nacional, a suspensão das instituições estatais e de partidos políticos, o fechamento de fronteiras e um toque de recolher, além de um alerta “contra qualquer intervenção estrangeira.”. Pouco depois, a França pousou aviões militares em uma base aérea.
Usinas nucleares francesas usam urânio do Níger
Trata-se do quarto golpe de Estado liderado por militares na região do Sahel nos últimos três anos. Mali, Burkina Faso, Sudão e, agora, o Níger. Ainda há o caso da Guiné, que não é um país do Sahel, embora próximo. Sahel é a região de transição entre o árido Saara, ao norte, e as regiões de selva e savana ao sul. Nos últimos anos, o Sahel tornou-se um foco do jihadismo, com diversos grupos extremistas operando na região, além de conflitos internos aos países.
Outra característica dos países da região é a riqueza mineral, explicada pela geologia. No caso do Níger, o país fornece cerca de 5% de todo o urânio mundial, além de ser rico em ouro, cálcio, cassiterita e outros minérios. Principalmente, o urânio nigerense abastece as usinas nucleares francesas, que fornecem cerca de 75% da energia elétrica consumida na França. Desde o início do século a França buscou diversificar seu fornecimento, mas cerca de 30% do urânio usado pela França vêm do Níger.
O leitor mais atento pode ter notado que, dos cinco países que citamos com golpes de Estado recentes, quatro foram colônias francesas. O golpe militar no Níger se encaixa em duas tendências regionais. A primeira é a de oficiais militares, muitos deles jovens, que defendem bandeiras econômicas desenvolvimentistas e políticas contra os mecanismos imperialistas franceses ainda vigentes mesmo após as independências, com a França mantendo grande influência na região.
Fazendo uma analogia, com todos os problemas das analogias, é algo que remete ao “salvacionismo” do movimento tenentista brasileiro do século passado, mas em uma versão anticolonial. Curiosamente, na mesma semana do golpe do Níger, a junta militar do Mali aboliu o francês como língua oficial do país. É importante ter em mente, então, que esses movimentos militares africanos não são apenas peões no tabuleiro global, mas também motivados por bandeiras locais e pela agência própria.
França versus Rússia
No caso do Níger, os problemas locais são o aumento do custo de vida, a pobreza endêmica, a corrupção governamental e a percepção de que as riquezas do país são exploradas para benefício alheio, sem desenvolvimento local. O conflito interno contra os jihadistas levou a uma maior militarização de setores da sociedade. Finalmente, os golpes no Mali e em Burkina Faso, e a consequente expulsão das tropas francesas desses países, fez do Níger o principal bastião francês no Sahel.
Isso aumentou o sentimento anti-França, com Bazoum sendo visto como um “fantoche” nas mãos do antigo império colonial por certos setores da sociedade. Outros, entretanto, viam nele como um líder liberal pró-Ocidente, contando com boas relações com os EUA. No último mês de março, inclusive, Anthony Blinken tornou-se o primeiro secretário de Estado dos EUA a visitar o Níger. Em questão de meses a situação mudou radicalmente, em um potencial fracasso para a inteligência dos EUA.
A outra tendência regional é a da aproximação com a Rússia. Ao mesmo tempo em que os atores políticos regionais possuem agência em suas ações, dificilmente agiriam completamente isolados, sem apoio. No caso já foram vistas demonstrações pró-Rússia na capital Niamey. “Coincidentemente”, o golpe ocorre ao mesmo tempo em que Vladimir Putin está recebendo diversas lideranças africanas em São Petersburgo, com dezessete chefes de Estado e outras delegações.
Quem está em São Petersburgo é Yevgeny Prigozhin, o dono do Grupo Wagner que foi classificado de traidor por Putin e “banido” para Belarus, já de volta. Em seu canal em um aplicativo de mensagens, Prigozhin afirmou que o Níger está “na verdade, ganhando independência” e já ofereceu os serviços do grupo Wagner. Um controle russo das minas de urânio nigerenses seria um duro golpe para a França. Recentemente abordamos aqui em nosso espaço a participação russa na atual guerra civil do Sudão.
A parceria com a Rússia interessa aos militares do Sahel, em geral, por envolver a cooperação militar desvinculada de pressões por reformas legais liberais ou questões como Direitos Humanos, ao contrário dos países chamados ocidentais. Não que essa pressão, por França ou EUA, seja genuína, claro, sendo muito mais uma ferramenta de discurso. Outra questão, claro, é que a Rússia será muitas vezes vista como “parceira”, sem a carga histórica das relações com a antiga metrópole colonial.
O golpe militar no Níger é, então, fruto tanto da dinâmica local, do histórico recente do país, quanto consequência de uma dinâmica regional e de uma disputa entre duas potências globais por influência na África. Considerando a situação política e de conflito no vizinho Chade, o leitor não deve ficar surpreso caso ele seja a próxima peça nesse dominó do Sahel, embora o país já seja uma ditadura militar. Resta ver qual será a respostas francesa ao golpe no Níger.
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