Aqui nesta coluna na Gazeta do Povo buscamos expor e discutir a política internacional. Mostrar sua importância, como ela pode afetar a vida dos leitores, ir além da superfície e do senso-comum, apontar caminhos e as origens de questões de nossos tempos. Nesse sentido, não basta ser reativo, falar das últimas semanas.
É importante ter em mente que alguns problemas são perenes, históricos e também que problemas podem surgir ou se agravarem a partir de fatos previstos. Nesta e na próxima coluna vamos passar por temas, dos maiores aos menores, para ficarmos de olho no ano de 2019. Nesta primeira parte, um giro pela Europa, pela África, pela América do Norte e um possível novo país.
Os conflitos pós-soviéticos
Um dos legados da dissolução da União Soviética é uma enorme população russa fora das fronteiras da Rússia. Uma das prioridades da política externa russa é a proteção dessas pessoas ou, ao menos, o uso dessa proteção como justificativa para ações externas. É a chamada Doutrina Karaganov, já explicada anteriormente. As contradições entre uma população fora de seu país e dentro de outro geram conflitos.
Conflitos de interesses ou literais, com movimentos separatistas e zonas autônomas. Exemplos do segundo caso são a Abkházia, a Ossétia do Sul, a Transnístria e, os mais visíveis e de maior repercussão, a anexação da Crimeia pela Rússia e os grupos separatistas pró-Rússia no leste da Ucrânia. No primeiro caso estão as grandes comunidades de eleitores russos em países ex-soviéticos e com relações atribuladas.
O ano de 2019 fornecerá oportunidades para soluções ou para aprofundamentos desses conflitos congelados. Na Moldávia, reconhecida internacionalmente como soberana da região separatista da Transnístria, ocorrerão eleições parlamentares em fevereiro, com a escolha de um novo primeiro-ministro, e também um referendo, que pode diminuir o tamanho do parlamento do país. Assim como na Geórgia e na Armênia, as relações com a Rússia são fator importante do debate político moldavo.
Nos países bálticos ocorrerão eleições presidenciais na Lituânia, onde aproximadamente 7% da população se identifica como russa, especialmente na fronteira do país. Com maior importância e proporção, a Estônia passará por eleições parlamentares em Março; os dois países são parlamentaristas, o que diminui o impacto de eleições presidenciais. E, no caso da Estônia, um quarto da população se identifica como russa. Nas duas fronteiras com a Rússia, estonianos chegam à ser menos que 5% da população local.
O caso mais evidente e importante é o da Ucrânia, que passará por eleições tanto para presidente, em março, quanto legislativas, em outubro. Tudo indica uma guinada ainda maior ao nacionalismo no parlamento, enquanto Poroshenko provavelmente irá ao segundo turno em sua busca pela reeleição. A favorita é Yulia Tymoshenko, figura tradicional da política ucraniana e uma das líderes dos vários movimentos anti-Rússia no país das últimas décadas, como a Revolução Laranja de 2004.
Tymoshenko passou três anos na prisão, em uma sentença de sete anos, por corrupção. Nas últimas eleições ela ficou em segundo lugar. Seu partido, cujo nome em português seria Pátria, possui apenas vinte dos 450 assentos da Rada, o parlamento. Ela é forte defensora da aproximação da Ucrânia com o Ocidente, incluindo a entrada do país na OTAN, algo que, hoje, seria improvável. Uma vitória de Tymoshenko concretizaria o nacionalismo no governo ucraniano, diminuindo as chances de uma negociação com Moscou.
Escolhas na Europa ocidental
A Europa passará por diversas eleições importantes em 2019, em que novos passos serão dados nos caminhos possíveis de uma maior integração europeia ou do euroceticismo. Em maio será a vez da Bélgica, com eleições antecipadas após a renúncia do primeiro-ministro após protestos da população flamenga, com tons anti-migratórios e também separatistas. Os separatismos europeus são um tema que aparecerão aqui nessa coluna.
O simbolismo das eleições belgas em relação à integração europeia aumenta com o fato de Bruxelas ser a sede de diversas instituições europeias. Outra eleição que será afetada pelo debate sobre questões migratórias será a da Dinamarca, em junho. Em maio ocorrerão as eleições para o Parlamento Europeu, eleito diretamente e proporcionalmente pelos cidadãos europeus e que cumpre função legislativa, tal qual um parlamento nacional.
Seus 705 assentos serão disputados pelas várias coalizões, incluindo as eurocéticas. Além dessas, eleições locais serão termômetros sobre as orientações políticas dos eleitores em dois países. Na Espanha e, especialmente, na Alemanha, onde quatro estados realizarão eleições, além de diversos distritos menores.
Os pratos principais desse ano eleitoral europeu, tanto para a cobertura jornalística quanto na discussão política, estarão na Hungria e na Polônia. Em outubro, os eleitores húngaros decidirão se reelegem Viktor Orbán como seu primeiro-ministro e, em novembro, será a vez dos poloneses. Em ambos os países será importante ver o tamanho dos resultados eleitorais e se coalizões serão necessárias. Os dois países são foco de políticas nacionalistas e anti-integração, embora de maneira conveniente, como visto aqui.
O Brexit
O dia 29 de março é o prazo final para a concretização da saída do Reino Unido da União Europeia. Teremos um Brexit com acordo, um Brexit sem acordo, um novo referendo? O governo britânico sobreviverá ou os trabalhistas de Corbyn voltarão a ocupar o cargo de primeiro-ministro, o que não acontece desde 2010? Em caso de Brexit, como ficarão a Irlanda do Norte e sua fronteira, a Escócia e seu movimento de independência, Gibraltar e seus laços econômicos com a Espanha? Todas essas respostas virão em 2019, junto com as eleições locais do Reino Unido e da República da Irlanda.
Kosovo e a Sérvia
Nos momentos finais de 2018, o parlamento de Kosovo apoiou a criação de um exército nacional para o pequeno país de reconhecimento internacional limitado. Isso afeta negativamente as conversas com a Sérvia; o reconhecimento sérvio da independência é visto como o maior entrave para a inserção internacional kosovar.
Ao mesmo tempo, os EUA, tentando mediar a situação, fizeram uma proposta de trocas de territórios. A Sérvia cede a posse do vale de Preševo, de maioria albanesa, em troca da região norte de Kosovo, onde está Mitrovica. O território é de maioria sérvia, embora esteja dentro da ex-província iugoslava que declarou independência em 2008 motivada pela sua população de origem albanesa. O status das negociações está por ser visto.
O processo de paz na Líbia
Na África, a Líbia continua esfacelada, sem um governo constituído e em guerra civil desde a intervenção ocidental em 2011 que derrubou Muammar Khaddafi. O ano de 2019 é de expectativa para concretização do processo de negociação que ganhou força em 2018, como na Conferência de Palermo em novembro. O conflito envolve quatro partes, uma delas não reconhecida nem, obviamente, admitida nas conversas, os grupos extremistas ligados à al-Qaeda. O problema é concertar os interesses dos outros três grupos.
A facção baseada em Tobruk, apoiada pelos países árabes e africanos, cuja ala militar é liderada pelo general Khalifa Haftar, visto como a figura de maior prestígio na Líbia atual; o Conselho da Revolução, baseado em Trípoli e apoiado por Qatar, Turquia e pela Irmandade Muçulmana; e o Governo de Acordo Nacional, em Benghazi, fruto da primeira tentativa de conversas entre as facções, liderado por Fayez Sarraj, apoiado pela Europa e pelos EUA, porém com pouca representatividade local.
O ideal seria obter concessões de Tobruk e de Trípoli, unificando os grupos em torno do Governo de Acordo Nacional que, por sua vez, cederia para uma maior participação das outras duas facções. Porém, não se trata apenas de ceder autoridade, como a formação de um governo de coalizão, mas também de quem controla as riquezas do petróleo; não é coincidência que as três sedes das facções são os terminais dos três corredores de exportação do óleo.
Anglófonos em Camarões
Enquanto na Líbia a situação pode melhorar, em Camarões ela pode piorar. O separatismo anglófono da Ambazônia cresceu e pode se tornar uma guerra civil de larga escala. O atual Camarões era, até a Primeira Guerra Mundial, uma posse alemã. Com a derrota germânica na guerra, a maior parte do território foi repassado ao controle francês, como mandato da Liga das Nações. Exceção feita à região da Baía de Amba, do rio Ambozes.
Esse pequeno território foi, até 1887, posse do império britânico. Naquele ano, os britânicos cederam as terras ao Império Alemão. Com o fim da Primeira Guerra, o governo britânico tomou de volta os 42 mil quilômetros quadrados, anexando-os à sua colônia da Nigéria. Em um plebiscito, em 1961, a população da região decidiu entre fazer parte da Nigéria ou de Camarões; o segundo caso foi o vencedor.
Como resultado, Camarões, um país francófono e com 40% de sua população católica, ambos frutos da colonização francesa, possui uma região anglófona e de maioria protestante; no total, cerca de 30% da população camaronesa é protestante. Sem mencionar os 18% de muçulmanos, os seis grandes grupos étnicos e a minoria de origem alemã. Uma colcha de retalhos do imperialismo do século XIX. É nesse contexto que os anglófonos protestantes da Ambazônia podem desejar uma independência que, apenas em 2018, deixou cerca de mil mortos.
Violência sectária na Nigéria
Falando em colcha de retalhos, e ainda na Baía de Biafra, a Nigéria possui uma dezena de grupos étnicos principais e quatro idiomas praticados por grandes grupos de população, além do inglês. No total, são 250 grupos e um número ainda maior de idiomas. Cerca de 10% da população segue religiões tradicionais locais; o restante é dividido quase ao meio entre muçulmanos e cristãos.
Dividir ao meio é uma expressão que cabe à Nigéria. A metade norte é rural e muçulmana, a metade sul é urbana e cristã. A metade leste do sul é católica, a metade oeste é protestante. A violência sectária no país cresceu nos últimos anos, e o maior exemplo disso foi o grupo extremista Boko Haram, no norte do país. A solução, infelizmente, está longe de chegar. Em fevereiro ocorrerão eleições para presidente e para o legislativo federal.
O atual presidente Muhammadu Buhari, que também foi ditador do país na década de 1980, concorrerá à reeleição. Alguns dos potenciais rivais serão Oby Ezekwesili, indicada ao Nobel da Paz, ex-ministra da Educação e líder do movimento Bring Back Our Girls (“Tragam de volta nossas garotas”), contra o sequestro de meninas pelo Boko Haram. Outro potencial rival é o líder da oposição Atiku Abubakar. Magnata do mundo empresarial e ex-vice-presidente, além de outros postos políticos, Abubakar venceu as primárias do seu partido, o maior partido nas ricas regiões petrolíferas do país.
As eleições nigerianas são importantes não apenas para uma resolução de seus conflitos internos, mas também para o desenvolvimento econômico do país. A Nigéria um dos grandes destinos de investimentos internacionais na última década, algo que foi proporcionado pela estabilidade democrática. Quando Buhari derrotou Goodluck Jonathan em 2015 foi a primeira vez que ocorreu uma transição de poder pacífica no país.
Era Bashir no Sudão
O ano de 2018 ainda não acabou e grandes protestos ocorrem no Sudão contra o ditador Omar al-Bashir, no poder desde 1989 e indiciado por crimes contra a humanidade pelo Tribunal Penal Internacional. O estopim dos protestos que já deixaram dezenas de mortos é o preço dos alimentos, entretanto, a situação é bem mais complexa e envolve décadas de tirania e repressão.
Se os protestos escalarem, as reações de China e Egito serão decisivas. O Egito possui profundos laços históricos e uma aliança política que estremeceu em tempos recentes, mas o Egito apoiou o Sudão contra a independência do Sudão do Sul, por exemplo. Já a China é a principal compradora de petróleo sudanês e investidora no país; muito dessa riqueza vai para bolsos indevidos. E, nessa troca, o Sudão adquire armas da China, em troca de petróleo.
Além de um país territorialmente grande, o Sudão possui localização importantíssima. Além de ser banhado pelo Nilo, seu território faz a “ponte” entre o mundo árabe (o país é da Liga Árabe) e a África sub-saariana. Nesse sentido, em uma piora da situação no país, grupos extremistas de terroristas nos vizinhos Chade e Líbia podem se aproveitar.
América do Norte
Nos EUA, o ano será marcado pelo governo Trump ter que enfrentar o desafio de governar sem o apoio da Câmara dos Deputados, agora controlada pelos democratas. Além, é claro, das novelas sobre russos, os ex-advogados de Trump e mais demissões na Casa Branca. No México, a novidade do governo Obrador será o tom; o quanto ele conseguirá mudar e cumprir de suas promessas em meio ao violento narcoestado mexicano.
Será do Canadá, entretanto, que virá a disputa eleitoral em 2019, com eleições gerais realizadas até outubro; sim, até, o prazo final é 21 de outubro, mas não há data acordada ainda. Os 338 assentos da Câmara estarão em disputa, o partido que conseguir 170 delas formará o governo. Aparentemente, tarefa fácil para Justin Trudeau, queridinho da mídia, e seu Partido Liberal, que possuem 181 assentos. Os conservadores precisam bem mais que os atuais 96 e os social-democratas querem se recuperar da última surra.
Um novo país?
Para terminarmos essa primeira parte, teremos a possibilidade de um novo país em 2019. A região autônoma de Bougainville, atualmente parte de Papua Nova Guiné, realizará um referendo de independência em 15 de junho. O principal território da província insular é a ilha de Bougainville, com cerca de 230 mil habitantes, a maior ilha do arquipélago das Ilhas Salomão; essa é uma referência geográfica, não política, já que Ilhas Salomão é também nome de um país da região.
Essa confusão de referências é a origem sociocultural do movimento de independência, que incluiu uma ala armada no passado. A população de Bougainville não seria papuásia, mas sim salomônica. A outra origem é econômica. Bougainville é muito rica em ouro e cobre, e os nativos alegam que os dividendos da exploração mineral vão para Papua Nova Guiné, não ficam em suas ilhas.
É uma discussão similar, ainda que mais tímida, à da Nova Caledônia, cuja população rejeitou a independência da França em 2018. O imperialismo e a Primeira Guerra Mundial também possuem seu papel aqui. Até 1914, Bougainville era posse alemã. Posteriormente, australiana, foi ocupada pelos japoneses durante a Segunda Guerra Mundial e tornou-se parte de Papua Nova Guiné independente em 1975. Ao menos pelas vias pacíficas, essa pode ser a única nova bandeira na galeria internacional em 2019.