A queda do governo afegão e o retorno do emirado do Talibã é iminente. Nas duas últimas semanas, o Talibã passou um verdadeiro rolo-compressor nas áreas controladas pelo governo afegão. O grupo, que controlava áreas do interior e das fronteiras afegãs, agora também controla a maioria das grandes cidades e capitais de províncias afegãs. Entre seis e doze de agosto, 13 capitais regionais foram tomadas pelo Talibã, incluindo as históricas Kandahar e Herat. Isso é consequência da apressada retirada dos EUA que, como consequência, pode colocar o "novo" Afeganistão no colo da influência da vizinha China.
Integrantes de governos dos EUA e da Europa, assim como alguns analistas políticos, inclusive brasileiros, estão se fazendo de surpresos ou chocados com o avanço do Talibã. Não apenas pela velocidade do avanço. Com todo o respeito, essa postura não é justificável. Estava muito claro que o Talibã não iria respeitar acordo nenhum, já que nunca respeitou um na sua História, e que um governo que ninguém apoia ia cair como um castelo de cartas.
Aqui em nosso espaço, ainda em março de 2020, foi dito que o governo Trump errava em negociar com o Talibã. Em setembro o leitor foi informado do histórico do grupo, que a perfídia era uma arma frequente do Talibã. Em março de 2021, a coluna analisou o plano de Joe Biden para o Afeganistão. A conclusão era de que se tratava de um plano falho. Finalmente, no mês passado, já era escrito aqui que a vitória Talibã era uma mera questão de tempo. Novamente, não é justificável a "surpresa" com o avanço do Talibã.
Importância do Afeganistão
Na coluna de março de 2020 estava o roteiro do que viria a acontecer. "O Talibã provavelmente vai 'se comportar' pelos próximos meses, conseguir a diminuição da presença militar dos EUA, se fortalecer e então voltar ao poder; novamente, sequer consideram o governo existente como legítimo, e não vai ser agora que vão mudar de ideia." Dito e feito.
Ainda na coluna de março de 2020, também comentamos que "a ausência dos EUA ainda abre as portas para os vizinhos chineses." E essa é a nova questão que emerge do cenário atual. Esqueça qualquer ideia de que o Afeganistão é um fim de mundo perdido e insignificante. Para que o país seja conhecido como "Cemitério de Impérios" é necessário o interesse desses impérios. Alexandre, russos e britânicos foram alguns dos que desejaram incorporar o Afeganistão aos seus domínios.
Uma terra rica em minérios, fonte de água potável nas montanhas do Hindu Kush e uma localização estrategicamente vital. Uma grande ponte terrestre que une as estepes a oeste e norte, o vale do rio Indo, o platô tibetano e o deserto de Xinjiang. Tudo isso faz do Afeganistão um local importante, por exemplo, para os projetos chineses de infraestrutura da Nova Rota da Seda.
O Talibã sempre teve como principal apoio internacional o Paquistão, mesmo que ambos os atores neguem. Por sua vez, o Paquistão tem na China sua principal aliada, política e econômica. A China é a maior fornecedora de armas ao Paquistão que, por sua vez, é o maior comprador de armas chinesas no mundo. O Corredor Econômico China-Paquistão permite aos chineses escoar exportações diretamente no oceano Índico. Além de dezenas de bilhões de dólares em investimentos chineses, o comércio anual entre os países gira na casa dos 20 bilhões de dólares.
Além disso, a fronteira entre Afeganistão e China é uma fronteira importante para Pequim, tanto pelas citadas questões geográficas e econômicas, quanto por envolver o Tibete e Xinjiang, a região da minoria uigur. O que a China mais deseja nessa fronteira é estabilidade. Se quem pode providenciar essa estabilidade é o Talibã, que seja. A moeda é o interesse, sempre, com qualquer potência.
Estabilidade e reconhecimento
Os governos dos EUA não mantêm sua aliança com a Arábia Saudita por amor, nem a França apoia autocratas nos países africanos francófonos por amizade. Entre estabilidade e Direitos Humanos, as potências, na maioria das vezes, vão escolher o primeiro. A América Latina durante a Guerra Fria que o diga.
O emirado Talibã anterior, que durou de 1996 a 2001, era reconhecido por apenas três países: Paquistão, Emirados Árabes Unidos e sauditas. Este novo emirado, que está para nascer, possivelmente terá o reconhecimento da China, ao menos informalmente, numa espécie de escada. Do Talibã para o Paquistão, do Paquistão para a China. Esse reconhecimento não será pouca coisa, muito menos se ocorrer formalmente.
Poderá servir tanto para conter ímpetos extremistas do grupo, como a iconoclastia que destruiu os Budas de Bamiyan, as execuções públicas e a repressão completa de qualquer emancipação feminina, quanto deixar esses assuntos fora da esfera pública internacional, sob a justificativa de serem "assuntos internos". Ainda, a China pode agir no Afeganistão para "combater o extremismo" na vizinha província de Xinjiang, por exemplo.
O fato é que, depois de vinte anos e sete trilhões de dólares, os EUA atingiram somente um dos objetivos traçados em 2001: pegar bin Laden, no já longínquo ano de 2011. Não conseguiram fortalecer o Estado afegão, as forças armadas afegãs, não conseguiram acabar com o Talibã, não dialogaram com os grupos locais, não compreenderam onde estavam pisando e não pensaram no longo prazo.
É quase surreal ver Washington anunciar o envio às pressas de três mil militares à Kabul, para acelerar a evacuação de todos seus cidadãos do país. Esse número já estava lá apenas alguns meses atrás. Realmente acreditaram que o Talibã não faria exatamente o que fez. O Reino Unido fez anúncio similar, de seiscentos soldados de elite para segurança da evacuação.
Obviamente, o virtual fracasso dos EUA no Afeganistão possui vários motivos, não é restrito ao ano atual ou ao ano passado. A ironia é que, no fim das contas, provavelmente jogaram o Afeganistão no colo da China, hoje principal rival internacional dos EUA. E isso, se ocorrer, será via Paquistão, esse quase agente-duplo nacional, aliado tanto de Washington quanto de Pequim. Não foi por falta de aviso.
Barroso vota por manter exigência de decisão judicial para responsabilizar redes por ofensas
Dias de pânico: o que explica a disparada do dólar e dos juros
Congresso fecha lista do “imposto do pecado”; veja o que terá sobretaxa e o que escapou
Como funciona a “previdência militar” que o Congresso vai rever