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O próximo dia 30 de janeiro marca os cinquenta anos do Domingo Sangrento de Derry, na Irlanda do Norte. Um evento importantíssimo tanto para a identidade recente irlandesa quanto para a disputa entre republicanos e unionistas, seu jubileu de ouro em 2022 calhou de ser apenas meses antes da eleição regional norte-irlandesa. E, até o momento, parece que o pleito terá um resultado inédito.
O Domingo Sangrento de Derry é, talvez, mais conhecido por ser homenageado na música Sunday Bloody Sunday, da banda irlandesa U2. Na ocasião, em 1972, uma passeata de cerca de dez mil manifestantes, a maioria irlandeses católicos, saiu de um bairro da cidade de Derry até a assembleia municipal. O protesto era contra as leis britânicas impostas na Irlanda do Norte no período dos Troubles, “Problemas”, o eufemístico nome para os cerca de quarenta anos de violência sectária na Irlanda do Norte, da década de 1960 até 1998.
Principalmente, o fato de que pessoas acusadas de “atividades terroristas” podiam ser detidas sem acusação formal e sem possibilidade de habeas corpus. Para cada membro do Exército Republicano Irlandês (IRA, na sigla em inglês), grupo irlandês considerado terrorista pelo governo britânico, preso com essa medida, uma dúzia de pessoas inocentes também era detida injustamente.
Mortos e violência
A manifestação era considerada ilegal pelas autoridades britânicas e o exército britânico alega que um grupo de adolescentes teria abandonado o grupo principal para jogar pedras em uma barricada do exército. Esse foi o estopim para a repressão generalizada do protesto pelo 1º batalhão do Regimento de Paraquedistas, uma unidade militar, não policial e tampouco capacitada para lidar com a população civil.
Vinte e cinco minutos depois, catorze manifestantes morreram e outros 26 estavam feridos. Todos os mortos eram católicos. Das vítimas fatais, seis eram adolescentes e cinco foram baleados pelas costas. Nenhum estava armado e não foi encontrado nenhum explosivo com os manifestantes ou na rota da manifestação. Essas foram algumas das conclusões do Inquérito Saville, de 1998, que classificou as mortes como “injustificáveis” e que os soldados britânicos “mentiram ativamente” para encobrir os fatos.
O inquérito motivou um pedido oficial de desculpas do governo britânico em 2010, do então premiê conservador David Cameron. O massacre foi o episódio com maior número de vítimas civis dos Troubles e, no período, além de repercussão negativa na imprensa, também causou um aumento no apoio ao IRA pelos norte-irlandeses. A passeata anual de homenagem aos mortos também costuma ser foco de tensões e disputas, e o brasão do Regimento de Paraquedistas é utilizado como símbolo por unionistas extremistas.
A própria cidade de Derry é considerada o “berço” dos Troubles. Localizada na Irlanda do Norte, parte do Reino Unido, a cidade fica muito perto da fronteira com a independente república da Irlanda. Segunda maior cidade da Irlanda do Norte, a maioria de sua população é católica, embora a cidade seja uma importante base militar britânica desde os tempos da invasão Tudor. A divisão e tensão são tamanhas que o time de futebol da cidade, o Derry City FC, disputa o campeonato irlandês vizinho, por razões de segurança.
Justo no ano dos cinquenta anos do Domingo Sangrento de Derry teremos eleições para o parlamento regional da Irlanda do Norte, criado em 1998 justamente como parte do processo de paz na ilha. A eleição anterior, disputada em 2017, foi realizada após o referendo que autorizou a saída do Reino Unido da União Europeia, mas antes do Brexit ser eventualmente concretizado.
Eleições e Brexit
O pleito do próximo mês de maio será o primeiro disputado em meio aos efeitos do Brexit. Como já explicado aqui em nosso espaço, mais de uma vez, o Brexit é particularmente sensível na ilha da Irlanda. Pela paz de 1998, a fronteira interna foi, na prática, abolida, com livre trânsito entre a República da Irlanda, país membro da UE, e a Irlanda do Norte. Diversos estudos e amostragens comprovaram que o trânsito de pessoas e de mercadorias diminuiu os episódios de violência e contribuiu para melhores relações.
O Brexit, entretanto, restauraria a fronteira, criando um impasse. A solução foi “deslocar” a fronteira para o mar. Produtos oriundos da UE que entrem em território do Reino Unido via a Irlanda precisariam passar pelos controles alfandegários nos portos no mar da Irlanda. Essa solução, por sua vez, desagradou os unionistas, tanto na Irlanda do Norte quanto em alguns setores ingleses, que enxergam uma clivagem interna ainda “culpa” da UE. No ano passado, comentamos como os episódios de violência aumentaram na ilha desde então.
Como consequência dessa mudança, os republicanos contam com o maior apoio de sua História na Irlanda do Norte. No caso, “republicano” é o termo para os nacionalistas norte-irlandeses que desejam a unidade irlandesa, independentes do Reino Unido e tornando-se parte da república da Irlanda. Unionistas são os que defendem os laços com o Reino Unido, em maioria protestantes. Existem também os nacionalistas do Ulster, que defendem a Irlanda do Norte independente, mas sem serem parte da república da Irlanda.
As pesquisas eleitorais apontam o Sinn Féin na liderança da preferência, com 25% das intenções de voto. Fundado em 1905, o Sinn Féin teve papel importante na guerra de independência da Irlanda. Sua versão atual foi fundada em 1970, como um partido de esquerda e republicano. Atualmente conta com 37 das 160 cadeiras do parlamento da república da Irlanda, 26 das 90 cadeiras da assembleia da Irlanda do Norte, mais sete assentos na Câmara dos Comuns em Londres, onde adota uma política de abstenção.
Principalmente, o Sinn Féin é visto como “o partido do IRA”, já que muitos integrantes do grupo entraram no partido após o processo de paz, embora não existissem laços oficiais. Pode ser a primeira vez na História que um partido abertamente contra a união com Londres vença as eleições na Irlanda do Norte. Todas foram vencidas por unionistas, e o Partido Democrático Unionista já fez parte de coalizões do governo britânico, em aliança com os conservadores.
Claro que 25% do eleitorado pode garantir o primeiro lugar, mas não uma coalizão de governo. Uma vitória do Sinn Féin, entretanto, além de inédita, também geraria talvez a maior pressão por uma união republicana irlandesa já vista nos meios políticos. Somado ao crescente desprestígio do governo Boris Johnson e ao fato de que Nicola Sturgeon, líder do governo escocês, prometer um novo referendo pela independência da Escócia, o próximo ano pode ser decisivo para o Reino Unido como conhecido hoje.