Ao comentar e debater acontecimentos relacionados à Rússia e ao leste da Europa, muitas pessoas, como jornalistas e analistas, cometem o erro de reduzir essas relações unicamente ao comunismo e ao seu legado. Isso pode acontecer por desconhecimento, por pressa, não necessariamente por agenda ideológica. Ainda assim, é um erro e um problema, que transmite de forma superficial relações que não são apenas políticas, mas culturais, sociais e históricas.
Para evitar abstrações, um exemplo comum desse tipo de comportamento. Nos últimos anos, Polônia e Ucrânia, ambos os países com governos de direita, realizaram ampla campanha de retiradas de monumentos do período socialista, no caso polonês, ou do período soviético, no caso ucraniano. Junto com as retiradas de monumentos, também há o batismo de ruas com novos nomes, mudanças heráldicas, um enorme processo de ressignificação da identidade nacional desses países.
Esses dois casos são muitas vezes descritos apenas como um repúdio ao comunismo ou ao passado soviético. Quando expresso de maneira mais panfletária, seriam sinais de que as pessoas que viveram “sob o comunismo” repudiam a ideologia. E essa descrição é, no mínimo, incompleta, com alguns pontos importantes de se ter em mente. Não se trata de negar que partes consideráveis das populações desses países possam ter uma recordação negativa dos períodos socialistas, mas frisar que não se trata apenas disso.
Estética
Primeiro, essa descomunização é, essencialmente, estética. Na aparência. A União Soviética existiu por setenta anos, e o socialismo dominou o leste europeu por quarenta e cinco. Períodos longos o suficiente para que as pessoas desenvolvam suas vidas na sociedade em que vivem. Em outras palavras, uma descomunização radical na década de 1990 puniria basicamente todos os habitantes de cada país, já que toda pessoa, cada família, tinha indivíduos com relações com o Estado e a máquina pública.
Mesmo na Polônia, berço do primeiro movimento organizado contra o governo socialista – o sindicato Solidariedade. Muitos políticos de destaque atual na Polônia eram críticos aos socialistas, mas com pais, irmãos, amigos, que trabalhavam em instituições de Estado, como universidades e as forças armadas. Os pais do presidente Andrzej Duda eram professores universitários, por exemplo. O atual comandante do exército polonês e seus antecessores iniciaram suas carreiras militares ainda nos anos 1980, no período socialista.
Um expurgo de todos os funcionários que serviram ao Estado socialista atingiria todas as famílias polonesas, húngaras, ucranianas e assim por diante. Seria inviável, injusto e uma tolice. Isso quando não há manutenção das elites de um país. Andrej Babiš, premiê tcheco, por exemplo, iniciou sua carreira política no período socialista e era um colaborador do STB, o serviço secreto tchecoslovaco. O repúdio ao passado socialista é, muitas vezes, estético, de imagem, discurso político e eleitoral.
Outra questão é que essa mudança estética é habitualmente para o resgate de símbolos nacionais romantizados, que evocam a ideia de um passado glorioso. O período pós-queda do muro de Berlim e dissolução da URSS é um momento de reconstrução de identidades nacionais, seguindo uma receita similar aos nacionalismos do século XIX. Por exemplo, a Polônia e os países bálticos vão, então, buscar sua nova simbologia no período entreguerras, nas breves experiências de independência que esses países tiveram.
É no final da década de 1910 que surgem, brevemente, diversos novos Estados no leste europeu, fruto da dissolução dos quatro impérios existentes até a Grande Guerra: o alemão, o russo, o austro-húngaro e o otomano. A maioria desses Estados durou até o início da Segunda Guerra Mundial. Como muitos leitores devem saber e associar, o período entreguerras é extremamente atribulado na região, com governos fascistas e diversas contradições fronteiriças entre os novos Estados e seus “territórios históricos”.
Nacionalismos
Cenário parecido se repete nos últimos trinta anos. O discurso nacionalista é muito forte nesses novos Estados nacionais do leste europeu, devido uma característica quase única: são Estados novos, mas de nações que já existiam. E, ao construírem uma nova identidade nacional, resgatam símbolos e questões vindas do entreguerras e também da Segunda Guerra Mundial. Daí a ressurgência de símbolos de origem fascista nesses países, assim como disputas acaloradas entre esses novos Estados.
Já vimos alguns exemplos dessas disputas, entre Hungria e Romênia, a postura do governo húngaro no geral ou as atuais fronteiras polonesas. Outro exemplo desse fenômeno, que ainda não foi tema de coluna dedicada, é a tensão entre os grupos nacionalistas poloneses e ucranianos. Em diversos protestos e eventos nacionalistas na Ucrânia, bandeiras polonesas são incendiadas. Diversas localidades na região da fronteira possuem nomes nos dois idiomas e, durante a Segunda Guerra Mundial, milícias lutaram entre si.
Chega-se, então, ao ponto principal, que é por vezes ignorado. A formação dessas novas identidades nacionais é, essencialmente, sedimentada na memória de quando essas nações não eram independentes, estavam “sob ocupação”, na retórica nacionalista. Ocupados por quem? Essencialmente, pela Rússia. Não pela URSS ou pelo socialismo apenas, mas pela Rússia, incluindo a czarista. O que muitas vezes é transmitido como sentimento anti-comunista é, na essência e com maior precisão, um sentimento anti-Rússia.
Em resumo: o período soviético é um capítulo da História de relações entre Rússia e Polônia, não é o livro inteiro. Na frase anterior, pode-se substituir Polônia por boa parte dos países do leste europeu. A Polônia foi retalhada e ocupada pelos impérios vizinhos, com o agravante, perante alemães e russos, de ser uma nação de maioria católica, com dominadores protestantes ou ortodoxos. E existem exemplos de ressignificação de prédios ou de símbolos fora do período comunista.
Talvez o maior deles seja o da Catedral do Exército Polonês, em Varsóvia. Construída no século XVII como um templo católico, ela foi transformada em igreja ortodoxa após o levante polonês de 1830, contra o domínio da Rússia czarista. Na ocasião, a violência da repressão russa provocou protestos do papa e da França, em defesa da população católica. A igreja ganhou as cúpulas tradicionais da arquitetura russa e, internamente, redecorada com ícones ortodoxos, como parte da russificação da Polônia.
Apenas na década de 1920 que ela foi reconstruída para sua forma, e propósito, original. Não por acaso ela é um símbolo do nacionalismo polonês, com monumentos e cerimônias marcando a História militar polonesa.
Outro exemplo, do lado ucraniano, é a recente oficialização da grafia ucraniana da capital, Kyiv, substituindo o nome antigo, Kiev, a grafia russa da palavra. Algo que, novamente, não possui relações com o período soviético ou com o socialismo, mas com uma identidade cultural pregressa.
Na Ucrânia, a maior parte desse processo de descomunização estética ocorreu de 2014 em diante. Ou seja, após a deposição de um governo pró-Rússia associado à corrupção, após o resgate de uma visão do passado voltado para a glorificação nacional, após a anexação da Crimeia pela Rússia e um conflito no leste do país entre ucranianos nacionalistas e cidadãos ucranianos falantes de russo. Tudo isso é um processo de repaginação nacional para eliminar o passado de dominação russa, não apenas soviética.
Exemplos contrários
Talvez o melhor exemplo, entretanto, seja o da Geórgia. A ex-república soviética, terra natal de Stálin, baniu a exibição de símbolos soviéticos e comunistas em espaços públicos em 2010. Vinte anos depois da independência da nova república. O que aconteceu nesse período? Um súbito despertar para aspectos negativos do passado soviético? Um repentino lamento pelos crimes de georgianos como Lavrentiy Beria, chefe da temida NKVD por quinze anos e, muito provavelmente, um sociopata?
Não, o que aconteceu foi a derrota na guerra contra a Rússia em 2008, com as regiões da Ossétia do Sul e da Abcázia incorporadas pela Federação Russa. Consequentemente, o crescimento de uma visão negativa da Rússia e, consequentemente, desse passado comum. E esse passado comum remonta ao início do século XIX, quando a Rússia derrota a Pérsia e anexa a Geórgia sob a justificativa de proteger os cristãos do Cáucaso. Novamente, o período soviético é um capítulo, não o livro todo.
Finalmente, existem os casos que mostram a dinâmica dessa relação entre o leste europeu e a Rússia, mas em sentido contrário, como é o caso da Bulgária. A Bulgária também teve um governo socialista, subordinado a Moscou pela Doutrina Brejnev, tal como a Polônia. A Bulgária também elegeu governos de direita e resgatou as identidades de seu passado pré-socialista. Ao ponto de eleger como premiê, em 2001, o cidadão Simeão Borisov. Ou melhor, elegeram como premiê Simão II.
Em um caso singular, o último czar búlgaro, deposto em 1946, ainda criança, retornou ao poder pela via eleitoral numa república. E mesmo com esse passado, o resgate de uma identidade nacionalista, a entrada na Otan, na União Europeia, não há um banimento dos símbolos do período socialista na Bulgária. Mais que isso, as poucas tentativas de banir essa simbologia nunca renderam em nada, pouco avançando dentre a classe política. O que explica essa diferença gritante de postura?
Enquanto o passado comum entre Polônia e Rússia é traumático, marcado por ocupações e conflitos, e o passado comum entre Ucrânia e Rússia é marcado por uma disputa pela essência nacional e predomínio regional, o passado das relações entre búlgaros e russos é visto de maneira positiva. A própria criação da Bulgária moderna, em 1878, se deu por intervenção russa, após derrotar o império otomano em guerra. Os dois países eslavos também compartilham a fé ortodoxa e o uso do alfabeto cirílico.
Por esses e outros fatores que é um erro, é superficial, reduzir a atual política do leste europeu apenas ao anticomunismo. Ele existe, e um passado de violências cometidas por regimes socialistas se faz presente, isso não se pode negar. A ascensão dos novos nacionalismos e de movimentos fascistas no leste europeu, entretanto, também está relacionada com um passado mais amplo, com minúcias e complexidades. A Europa atual é mais fruto do Longo Século XIX do que se costuma pensar.
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