O Mar Negro é um local rico em História, importância cultural e, acima de tudo, importância estratégica. Por séculos, o Mar Negro é a principal saída marítima para a Rússia, com portos de águas fundas e quentes na maior parte do ano. Durante todo o século XIX, o grande objetivo externo da Rússia era a posse dos estreitos de Istambul, garantindo seu acesso aos oceanos, um histórico que dialoga com a nossa mais recente coluna. Não é de surpreender que parte importante da atual ofensiva russa contra a Ucrânia seja na costa do Mar Negro. E onde está avançando mais.
A importância do Mar Negro não é apenas histórica, mas também econômica. Por ano, transitam por suas águas mais de setenta milhões de toneladas de trigo, mais de 10% de toda a produção mundial do cereal. Rússia e Ucrânia dominam o mercado internacional e, pensando nos países, a situação fica ainda mais gritante, já que 95% das exportações de trigo ucranianas transitam pelo Mar Negro. Também passa por ali um terço de todo o óleo de girassol comercializado no mundo, além de grandes quantidades de petróleo, carvão mineral e aço. Sob suas águas estão dez bilhões de barris de petróleo e dois trilhões de metros cúbicos de gás natural.
No Mar Negro deságuam o Danúbio, o Dnieper e o Don, três dos maiores rios da Europa, fazendo com que a influência do mar vá além dos países de sua bacia. O principal porto comercial russo é o de Novorossiysk, mais o de Sevastopol, sua principal base naval, na Crimeia, anexada em 2014. Já os ucranianos contam principalmente com os portos de Odessa e de Mariupol, a oeste e a leste da Crimeia, respectivamente. Mariupol, inclusive, fica no oblast de Donetsk, reconhecido como independente pelo governo Putin no último dia de 21 de fevereiro.
Ofensiva pelo sul
Considerando toda essa importância, geográfica e econômica, não é de se estranhar que uma das primeiras ofensivas russas seja pela costa ucraniana. A partir, justamente, da Crimeia anexada. Como explicamos aqui em nosso espaço, a Ucrânia, desde o início do mês, sofre com um bloqueio marítimo pelas vastamente superiores forças navais russas. Junto com isso, enfrentava a possibilidade de ofensivas vindas do sul, pela Crimeia, do norte, pela tríplice fronteira com Belarus, e, do leste, pelas regiões controladas por separatistas.
Some-se o fato de que forças russas estão também na região da Transnístria, em Moldova, ao oeste, e têm uma Ucrânia cercada e sem conseguir concentrar suas forças de defesa em apenas uma frente, sofrendo com um “cobertor curto”. Provavelmente é consequência desse “cobertor curto” o fato de que as forças ucranianas não estão tendo um grande sucesso no fronte sul. Mariupol está cercada enquanto a coluna é escrita, por forças separatistas do leste ucraniano, russas e chechenas. Odessa está com a costa bloqueada e especula-se que forças russas podem tentar um desembarque direto na cidade ou uma operação anfíbia. Forças russas tomaram a cidade de Kherson, que controla a foz do Dnieper, além de ser um foco de indústria naval.
E um dos primeiros avanços russos na atual guerra, ou “operação militar especial”, como eufemisticamente chamada pelo Kremlin, foi tomar o Canal da Crimeia, ao norte da península. A questão do canal era uma das queixas russas desde a anexação da Crimeia em 2014, acusando a Ucrânia de ilegalmente bloquear as águas do canal, a principal fonte de água potável da Crimeia.
E a Ucrânia não está sequer perto da posição de resistência no Mar Negro. Sua marinha já era diminuta em 2014, quando parte considerável de seus navios desertaram para a Rússia. A crise motivou um programa de reforma e ampliação dos meios navais ucranianos, incluindo a construção de navios próprios, a aquisição de navios feitos na Turquia e também o recebimento de navios dos EUA, alguns como doação de estoques inativos.
Incidentes e Turquia
O programa, entretanto, está longe de ser completado. A Ucrânia, hoje, conta apenas com cerca de dez de pequenos navios de patrulha de diversos tipos. Sua principal embarcação era a fragata Hetman Sahaidachny, que também servia como nau-capitânia. Já circulam fotos do navio em um porto perto de Odessa, emborcado na água, sem danos externos aparentes. Ou seja, muito provavelmente afundada pela própria tripulação, para evitar a captura do navio. Talvez, também, fruto de uma operação de sabotagem.
Não é apenas o trânsito naval russo e ucraniano que sofre com a guerra. Nos últimos dias, diversos incidentes no Mar Negro afetaram outros países. Um marinheiro de Bangladesh morreu quando um cargueiro foi atingido por estilhaços, um navio de bandeira das Ilhas Marshall foi atingido e um cargueiro estoniano foi afundado, sem vítimas fatais. Um helicóptero romeno caiu e deixou sete mortos, e não está claro ainda se foi um acidente mecânico ou um abate por engano.
Além dos efeitos de qualquer guerra em prejudicar o comércio marítimo, algumas das maiores empresas de frete marítimo aderiram às sanções contra a Rússia. E, em uma reviravolta no que concerne ao Mar Negro, a Turquia considerou que a Rússia é, hoje, uma “nação beligerante”. Isso dá direito ao governo de Ancara, pela Convenção dos Estreitos de 1936, de limitar o trânsito de navios militares russos por Bósforo e por Dardanelos. O país não pode impedir que um navio baseado no Mar Negro retorne para sua base, mas já impediu o trânsito de navios russos que são baseados no Báltico.
A Turquia tem se mostrado uma das principais aliadas da Ucrânia, em uma política que pode até soar contraditória. Ancara precisa equilibrar delicadas relações com a Rússia, um grande parceiro econômico, fornecedor de armamentos e de tecnologia, ao mesmo tempo que é um rival, tanto histórico quanto atual. Turquia e Rússia estão em lados opostos nos dois conflitos do Cáucaso e, na Síria, a cooperação pontual também é marcada por episódios de tensão e de desconfiança, como quando um caça russo foi abatido pela Turquia e o então embaixador russo, Andrei Karlov, foi assassinado em Ancara em 2016.
Enquanto apoia politicamente a Ucrânia e fornece armamentos importantes, como os drones TB2, que nossos leitores já conheciam, a Turquia não irá arriscar uma guerra aberta contra a Rússia. Um país da OTAN arriscar esse conflito seria potencialmente catastrófico. Uma maneira turca de equilibrar isso é usando o direito internacional, com a convenção de 1936 “debaixo do braço”, para impedir uma maior concentração militar russa no Mar Negro. Pelo andar dos eventos, entretanto, e infelizmente para o governo de Kiev, a guerra no Mar Negro está próxima de acabar, já que Mariupol e Odessa podem cair nos próximos dias. Já o impacto no comércio internacional vai demorar a passar.