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O Equador conseguiu uma unanimidade, algo raro na comunidade internacional nos tempos atuais. No caso, uma unanimidade negativa, já que toda a comunidade internacional condenou o país e sua operação policial na embaixada mexicana em Quito. A operação para capturar o ex-vice-presidente Jorge Glas pode render um demorado debate no Direito Internacional e gerar consequências negativas para o país sul-americano.
Curiosamente, o episódio acontece na mesma semana em que explicamos em uma coluna aqui em nosso espaço sobre o conceito de inviolabilidade de representações diplomáticas. Naquela ocasião, o motivo da coluna foi a visita do ex-presidente brasileiro Jair Bolsonaro à embaixada húngara em Brasília. Recordemos o principal ponto daquela coluna: embaixadas e consulados são invioláveis.
Isso não quer dizer que sejam “território” do país acreditado, ao contrário do que diz o mito perpetuado por Hollywood. Tampouco que seja um local onde a lei do país que a sedia não vale. A inviolabilidade foi articulada para proteger os Estados e impedir que um país invada a representação diplomática de outro, por vezes com justificativas criminais, e use a situação para obter informações ou documentos.
Jorge Glas
Jorge Glas foi vice-presidente do Equador em duas ocasiões. Primeiro, de maio de 2013 a maio de 2017, no último mandato de Rafael Correa, a principal liderança da esquerda equatoriana nas últimas décadas. Depois, de maio a dezembro de 2017, no início do mandato de Lenin Moreno. Curiosamente, Moreno foi o vice-presidente de Correa no início de seus governos, de 2007 a 2013.
Lenin Moreno foi eleito em uma plataforma de esquerda, e possui a distinção de ser a primeira pessoa publicamente cadeirante a ser eleito presidente de um país. Posteriormente, Moreno se distanciou de seu “padrinho” político Correa e formou uma coalizão com a direita equatoriana. Nesse processo, Jorge Glas foi removido de suas funções de vice-presidente e o parlamento aprovou María Alejandra Vicuña no posto.
Nos quatro anos de seu governo, Moreno teve o mesmo número de vice-presidentes. O que explica o afastamento de Glas não é apenas o distanciamento político, entretanto. O afastamento ocorreu dias depois dele ser condenado à prisão pela “Lava-Jato equatoriana”, uma sentença de seis anos de prisão por ter coordenado um esquema que envolveu treze milhões de dólares em propinas, desviadas especialmente para campanhas eleitorais.
A empresa que pagou as propinas é uma velha conhecida do público brasileiro, a empreiteira então chamada Odebrecht, hoje Novonor. Em abril de 2020, Glas foi condenado a mais oito anos de prisão por ter recebido propinas para si, além da perda dos direitos políticos por vinte e cinco anos. Em 2022, ele saiu e voltou para a prisão, em meio aos debates legais e pedidos do direito de habeas corpus.
Em dezembro de 2023, Jorge Glas entrou na embaixada do México em Quito e solicitou asilo político, afirmando que sofre perseguição política. Para sua defesa, essa perseguição seria comprovada por violações do devido processo legal nos anos anteriores, além de uma suposta ilegalidade quando de seu afastamento do cargo de vice-presidente. Ele estava na missão diplomática mexicana desde então.
É importante notar que, historicamente, o México possui profunda tradição de receber solicitantes de asilo político, aspecto do qual o governo mexicano sempre expressa orgulho. O país recebeu, e recebe, pessoas tanto de direita quanto de esquerda, como críticos cubanos de Fidel Castro e pessoas perseguidas pelas ditaduras militares centro-americanas. Seria atípica uma recusa de asilo pelo México.
Invasão da embaixada
O governo mexicano solicitou às autoridades equatorianas um salvo-conduto, que permitiria que o Jorge Glas recebesse asilo político, saísse da embaixada e fosse ao aeroporto, de onde seguiria para o México. Isso evitaria uma situação como a de, curiosamente, Julian Assange, que passou anos residindo na embaixada equatoriana em Londres. Esse pedido de salvo-conduto foi um dos estopins da operação policial equatoriana.
Outro estopim foi uma troca de farpas entre os dois governos. No dia três de abril, o presidente do México, Andrés Manuel López Obrador, afirmou em uma entrevista que o assassinato de Fernando Villavicencio, candidato equatoriano nas últimas eleições, beneficiou o desempenho eleitoral de Daniel Noboa, atual presidente, permitindo que ele passasse Luisa González, a candidata do partido Revolucíon Ciudadana de Correa.
Após os comentários do presidente mexicano, o Equador declarou, no dia 4 de abril, a embaixadora mexicana Raquel Serur Smeke uma persona non grata, afirmando que as declarações de Obrador consistiam em intervenção em assuntos internos. Como resposta, o governo mexicano finalmente concedeu o asilo a Glas. Noboa, por sua vez, afirmou que não seria concedido um salvo-conduto.
A polícia equatoriana invadiu a representação mexicana em Quito na noite do dia cinco de abril. O termo “invasão” se justifica pois, mesmo com um mandado de prisão, a polícia poderia entrar no recinto apenas com a anuência do chefe da missão diplomática, o que não ocorreu. Pelo contrário, o encarregado de negócios mexicano no Equador afirma que foi agredido durante a operação.
Direito internacional e eleições
Jorge Glas já está em uma prisão de segurança máxima. O governo mexicano rompeu todas as relações com o Equador e, principalmente, toda a comunidade internacional condenou a operação e as ações equatorianas, usando desde linguajares mais brandos até alguns mais firmes. Organizações multilaterais também condenaram o episódio, como a Organização dos Estados Americanos.
O México também afirmou que vai levar o assunto à Corte Internacional de Justiça, já que o Equador cometeu flagrante violação da Convenção de Viena de 1961. A coluna pode antecipar com confiança que a defesa equatoriana será baseada na Convenção de Caracas de 1954, que proíbe a concessão de asilo político em casos de crimes comuns. O debate vai, então, girar em torno de concluir se Jorge Glas sofre ou não perseguição política.
Em termos econômicos, talvez não haja muito prejuízo aos países. O comércio bilateral entre eles é relativamente pequeno, pouco compartilham organizações internacionais e, em muitos aspectos, são na verdade concorrentes, como no petróleo e em alguns produtos agrícolas. O maior prejuízo ao Equador é em suas relações exteriores, com o risco de isolamento e de constrangimento.
A grande questão é o eventual impacto na política interna equatoriana. Noboa enfrenta eleições já em 2025, ele foi eleito apenas para cumprir o restante do mandato de Guillermo Lasso. Por um lado, fortalece sua imagem de postura firme contra a criminalidade. Por outro, pode favorecer ideias de que Glas e Correa, exilado na Bélgica, realmente são perseguidos de forma arbitrária. Quem vai responder é o voto do cidadão equatoriano.
Conteúdo editado por: Bruna Frascolla Bloise