Na semana passada chegou ao fim uma crise constitucional e disputa entre poderes que não tirou o sono de ninguém. Na pequena Moldova, um país incrustado entre a Romênia e a Ucrânia, o presidente em exercício, Pavel Filip, dissolveu o parlamento local no domingo, dia nove de junho. A sua proposta era a de convocar novas eleições, já que o parlamento estava fragmentado entre diversos partidos desde as eleições do começo do ano, sem uma força vitoriosa clara.
A grande crise política do pequeno país europeu teve algumas viradas de trama dignas dos clichês das séries. Ela começou com a suspensão do presidente Igor Dodon pelo judiciário, no próprio Domingo; Filip assumiu interinamente, pois era ocupante do cargo de Primeiro-ministro no sistema parlamentarista moldavo. Com isso vieram as acusações de um golpe para retirada de Dodon do poder, acusação que Filip tentou remediar com a convocação de novas eleições.
Russos e a Moldova
Existe um elemento, entretanto, que faz dessa crise merecedora de mais atenção do que habitualmente aconteceria. Moldova, assim como várias ex-repúblicas soviéticas, possui sua política dividida basicamente em três eixos, como já vimos aqui nesse espaço ao tratar da Geórgia ou da Ucrânia: os grupos pró-Rússia, muitas vezes formados por comunidades russófonas; os grupos pró-União Europeia, habitualmente formados pelos setores mais jovens da população; e os oligarcas locais, uma mistura de nacionalismo e fisiologismo.
Inclusive, algo que pode confundir algumas pessoas é o nome Moldova. Historicamente o país se chamava Moldávia, seu nome como república soviética. A mudança veio por pressão do conjunto dos setores mais nacionalistas e dos pró-Europa. A Romênia possui uma região chamada Moldávia; romenos e moldávios possuem elos históricos em comum, algo exemplificado nas bandeiras quase idênticas. Em outras palavras, a região foi disputada pela força e pela diplomacia nos séculos recentes.
A região da atual Moldova também é chamada de Bessarabia e foi parte da Romênia e do Império Russo czarista. Em 1917, com as revoluções russas e a presença romênia na vitoriosa Entente, a atual Moldova voltou à integrar a Romênia. Já no contexto da Segunda Guerra Mundial, a União Soviética retomou a região pela força, o que foi reconhecido pelas potências aliadas ao fim da guerra, especialmente devido ao fato de que a Romênia fez parte do Eixo, aliada da Alemanha nazista.
Com o fim da União Soviética o nome do país foi alterado de Moldávia para Moldova, uma maneira de distinguir o nome do país soberano com o nome da região romena, o que agrada os nacionalistas; além disso, os pró-Europa vêem atualmente a distinção como uma maneira de evitar conflitos diplomáticos com a Romênia, pensando em uma eventual integração europeia. Como exemplo, evitar algo similar ao ocorrido entre a ex-República Iugoslava da Macedônia e a Grécia.
Crises políticas e mediação
Explicada a questão da nomenclatura, é interessante também notar que a pequena Moldova vive em crises políticas; nos últimos seis anos o país teve oito primeiros-ministros. Ao contrário de outros países, entretanto, os atores internos não contam com o apoio explícito de seus parceiros externos. Os pró-Europa não contam com o maior carinho de Bruxelas ou dos EUA, assim como os pró-Rússia não necessariamente contam com apoio incondicional de Moscou. E os fisiológicos, claro, pendem de acordo com o sabor dos ventos.
Enquanto a Geórgia e a Ucrânia tornaram-se campos de disputas entre as potências mundiais, em Moldova essas mesmas potências costumam cooperar umas com as outras para evitar uma escalada de eventuais crises. E foi isso que aconteceu também dessa vez. O motivo é que está em Moldova um dos “conflitos congelados” herdados da Guerra Fria e da dissolução da União Soviética, com a auto-proclamada e na prática independente República da Transnístria.
Uma área de pouco mais de quatro mil quilômetros quadrados, com cerca de meio milhão de habitantes e um PIB cuja estimativa gira em torno de tímido um bilhão de dólares. Uma faixa de território na fronteira com a Ucrânia habitada em sua maioria por russos, que não se consideram nem moldavos e nem ucranianos. A origem dessa colonização russa está no Império Russo, quando as forças do czar desejavam ocupar as terras estratégicas ao redor do rio Dniestre, tido como a fronteira natural da Ucrânia.
A soma dessa colonização e da importância estratégica da região explica a delicadeza do conflito congelado. Ali estava uma das “fronteiras” da Guerra Fria, separando a União Soviética da Europa. Por isso, importante sede militar, com o 14º Exército de Guardas ali. A economia e a identidade da região giravam muito em torno do exército, formado, em sua maioria, por integrantes da comunidade russófona dali. Em 1992, no contexto da independência da Moldova, estoura um conflito.
O fantasma de uma guerra civil
Entre Março e Junho de 1992, cerca de cinquenta mil combatentes lutaram pela Transnístria; um para cada dez habitantes na demografia de hoje, proporção provavelmente maior na época. De um lado, o exército e a polícia da Moldova, apoiados por voluntários romenos; do outro, as forças ex-soviéticas pró-Rússia, com voluntários cossacos ucranianos. Entre quinhentos e mil mortos, com cerca de dois mil feridos e alguns milhares de deslocados.
O estopim do conflito foi a disputa sobre o reconhecimento oficial dos idiomas, algo similar ao ocorrido recentemente na Ucrânia. O governo de Moldova desejava que apenas o moldávio fosse idioma oficial; ele que é, em linhas gerais, um primo do romeno, idiomas muito similares. Isso gerou uma ansiedade generalizada por uma especulada união com a România; no caso das comunidades russófonas, uma ansiedade apreensiva, temendo a perda de direitos de cidadania e tornarem-se uma “segunda classe” no novo país.
A presença militar na região era tão desproporcional, com a abundância de material bélico em comparação com a população, que a região tornou-se um centro do contrabando de armas mundial, inspirando parcialmente a trama do filme O Senhor das Armas. Ao ponto de que os EUA teve que intervir no contrabando de armas da região, mas não de uma maneira política ou jurídica, mas econômica. A Força Aérea dos EUA comprou os Mig-29 de Moldova, então um vetor de caça de ponta, para evitar que fossem para o Oriente Médio.
Desde então, embora reconhecida internacionalmente como parte de Moldova, a Transnístria é, na prática, uma república independente. Inclusive, tropas russas ficam na fronteira, monitorando eventuais hostilidades entre os dois lados. A questão dos “lados” é curiosa, mostrada no nome da região. A maior parte da imprensa usa a terminologia oficial de Moldova, nominalmente soberana da região: Transnístria, ou seja, "para lá do rio Dniestre", assim como Cisjordânia e Transjordânia em relação ao rio Jordão.
Para os russos, entretanto, a região se chama Pridnestrovie, que deveria ser traduzido como Cisdniéstria, ou seja, "do lado de cá do Dniestre". Cada nomenclatura de acordo com a perspectiva, geográfica e política, de quem a usa. Independente do nome usado, uma fagulha pode reacender uma crise de maior escala, até mesmo uma guerra civil, similar ao que ocorre na Ucrânia. Por isso que uma crise política em um pequeno país, o mais pobre da Europa, é merecedora da necessidade de compreensão e da atenção das potências.
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Peço desculpas aos leitores pela ausência no início da semana, motivada por questões de saúde. Voltamos à programação normal.