A rainha Elizabeth II do Reino Unido faleceu no último dia oito de setembro. Além do convite ao leitor para ver o obituário da monarca preparado pela Gazeta do Povo, a ocasião levanta algumas reflexões. No caso dos temas políticos, nenhum deles é de curtíssimo prazo, claro, já que os próximos meses serão marcados pelas cerimônias oficiais. E depois, entretanto, qual pode ser o impacto político concreto do falecimento da mais longeva monarca da História britânica?
Para boa parte da população britânica e de diversos países domínios da coroa, Elizabeth II era um símbolo, no sentido positivo da palavra. Para essas pessoas, ela significava resiliência, estabilidade, um rosto familiar no seio da política. Também significava, especialmente para os mais velhos, as glórias britânicas, os “bons tempos” quando essas pessoas se sentiam governando uma larga porção da Terra, ela que foi a última monarca do império britânico como um dia já foi.
Claro que isso é um objetivo resumo, restrito a um parágrafo. O fato é que Elizabeth II conectava a geração Z britânica de 2022 com os baby boomers da década de 1950, uma amálgama da identidade britânica e presença constante no imaginário desses apoiadores. Também tornou-se um símbolo de conduta quando comparada aos escândalos políticos e de vida pessoal envolvendo filhos, irmã, noras e netos. Em suma, Elizabeth era uma espécie de “avó coletiva”, que reina desde a década de 1950 e cujas funções públicas remontam à Segunda Guerra Mundial.
Charles III
Por tudo isso, o símbolo que era Elizabeth II não terá substituição à altura. Ao menos não em seu filho, o novo rei Charles III, ou em seu neto na linha sucessória. E isso gera, e gerará, repercussão política concreta, não apenas nos tabloides de fofoca ou nos protocolos e códigos de etiqueta. O primeiro aspecto, mais óbvio, é o fato de que a imagem popular de Charles III está longe de ser favorável.
Nos últimos anos, em diversos momentos, se especulou a possibilidade dele abdicar ao trono em nome de seu filho mais velho, William. Lembremos que o direito britânico é consuetudinário e o precedente de abdicação que existe hoje é o de Eduardo VIII, que abdicou em 1936. Naquela ocasião, sua abdicação levou junto sua linhagem, para evitar que um eventual filho com sua esposa plebeia, estrangeira e divorciada pudesse reivindicar a coroa em algum momento.
Para que Charles III possa abdicar em nome de seu filho, se for o caso, seria necessária uma lei diferente, aprovada pelo parlamento. Por uma série de motivos, inclusive o luto pela mais longeva monarca britânica, isso é inviável. Charles III é rei, resta saber se será coroado. Eduardo VIII, inclusive, não foi coroado, já que a cerimônia não é imediata, para respeitar o prazo de luto pelo monarca falecido. Curiosamente, a impopularidade de Charles III pode ser parcialmente revertida, dependendo de seu papel nas cerimônias de despedida de sua mãe.
Reino Unido
Existem outros possíveis efeitos na política interna britânica. Não no curto prazo, claro. Nenhuma liderança política vai correr o risco de parecer desrespeitar os devidos ritos e o luto nacional por esse poderoso símbolo que faleceu. Um deles é o do fortalecimento da demanda escocesa por um novo referendo de independência, algo já prometido por Nicola Sturgeon, cujo Partido Nacional Escocês possui maioria no parlamento local. As pesquisas de opinião nesse tema são virtualmente empatadas.
A independência escocesa é fortalecida também pelo Brexit, que, mais ainda, afeta as relações na ilha da Irlanda, um tema que já vimos em diversas ocasiões aqui em nosso espaço. A perda do mais poderoso símbolo da monarquia pode, no longo prazo, fortalecer o republicanismo irlandês. Lembrando ao nosso leitor que, no contexto da Irlanda do Norte, "republicanismo" significa não apenas uma separação do Reino Unido, mas uma reunião com a República da Irlanda, em uma ilha unificada.
Não se trata de dizer que a morte de Elizabeth diretamente fortalece essas pautas, mas, principalmente, que a força de seu símbolo impedia o maior progresso da independência escocesa ou do republicanismo irlandês. O mesmo efeito está no republicanismo pelos outros domínios da coroa britânica. Quando falamos que Elizabeth foi a última monarca do império, se trata de lembrarmos de quantos territórios tornaram-se independentes e, também, de quantos domínios da coroa tornaram-se repúblicas totalmente separadas do Reino Unido.
Ainda nas primeiras décadas de seu reinado, Elizabeth perdeu as coroas do Paquistão, da Nigéria e do Gana, nações em que ela foi Chefe de Estado mesmo após as independências. Esse não foi apenas um processo histórico. Fiji e Barbados tornaram-se repúblicas em anos recentes. Barbados foi inclusive tema de coluna aqui em nosso espaço e já naquela ocasião falávamos do fortalecimento do republicanismo nos reinos britânicos após a rainha cumprir o curso natural da vida, o que aconteceu agora.
Republicanismo
No médio prazo, teremos o crescimento do republicanismo na Nova Zelândia, na Austrália e no Caribe. Em maio de 2021, a premiê neozelandesa Jacinda Ardern disse acreditar que o país será uma república em breve. Pesquisas colocam uma espécie de “empate” sobre o tema na opinião popular, enquanto pautas como uma nova bandeira nacional, sem os símbolos britânicos, e maior participação dos maori na política possuem maior apoio.
Na Austrália, em diversas pesquisas de opinião, o republicanismo vence, além de ser uma posição defendida pelo Partido Trabalhista e pelos verdes, além de ser forte no Partido Liberal. Os mesmos debates citados, sobre bandeira e papel político das populações nativas, também se aplicam. No caso desses dois países o que pode manter os laços com Londres não será a monarquia ou o rei Charles III, mas o receio de relações mais azedas com a China. O republicanismo significaria, provavelmente, maior aproximação com os EUA.
Seria ingênuo achar que a morte de Elizabeth, ao encerrar a trajetória política de um símbolo tão poderoso que foi seu reinado, não teria repercussões políticas. Será uma grande comoção nacional, talvez mundial, mas, passada essa comoção, muita gente vai se perguntar: “e agora?”. E muitas das respostas que surgirão não serão agradáveis aos ouvidos de Londres, muito menos do novo rei Charles III.