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A Tunísia era o único caso de avanços democráticos após a chamada Primavera Árabe. Era, verbo no passado. No último dia 25 de julho, uma nova constituição foi aprovada via um referendo duvidoso, concentrando poder na figura do presidente Kais Saied e, na prática, retornando o país ao período autoritário de Abidine ben Ali. O referendo, além de criar uma nova ordem jurídica autoritária, passa longe de resolver a crise política do país.
Aproximadamente um ano atrás falamos da crise da Tunísia aqui em nosso espaço. Curiosamente, no início de 2021 falamos também dos dez anos da Revolução de Jasmim, o processo popular de 2011 que derrubou a ditadura de ben Ali na Tunísia, criou um ambiente político democrático e resultou em uma nova constituição, em 2014, a segunda após a independência do país do domínio francês, em 1956.
A constituição de 2014 estabeleceu um governo semipresidencialista, consequência do trauma da ditadura de ben Ali, para impedir que um político concentrasse poder demais em sua figura. O poder executivo, então, foi dividido entre o presidente, como chefe de Estado, e o legislativo unicameral, que nome chefe de governo, o primeiro-ministro, líder do partido de maior bancada, que forma seu gabinete.
Com isso, a Tunísia era considerada o único caso de sucesso da chamada “Primavera Árabe”, um termo bastante inapropriado, tanto naquele momento quanto hoje. Por exemplo, em 2015, o Quarteto do Diálogo Nacional tunisiano, formado por organizações da sociedade civil, foi laureado com o Nobel da Paz, pelo seu papel em ampliar a democracia, a representatividade e os direitos humanos no país.
Crise atual
O trauma do poder concentrado em um homem motivou a divisão do poder que, por sua vez, motivou as críticas ao novo modelo político. Supostamente ineficaz, lento, fragmentado, quando, na verdade, apenas democrático e consequência de um parlamento fragmentado. Por sua vez, esse legislativo dividido representava a vontade do eleitor. O problema de regimes autoritários é que perpetuam uma falsa ideia de eficiência.
Para muitos, incluindo o presidente, entretanto, o maior problema desse parlamento pulverizado, entretanto, estava em sua composição. O maior partido do parlamento era o Ennahda, inspirado na Irmandade Muçulmana egípcia, ou seja, um partido religioso, que busca fortalecer “valores tradicionais” e rejeita uma sociedade secular e “ideologias estrangeiras”, como o liberalismo e o socialismo.
Ter um partido islamista como principal força política do país desagradava diversos setores da sociedade e do estamento tunisiano, como parte do judiciário, origem de Kais Saied, e as forças armadas. A culpa da falta de uma coalizão partidária que governasse foi colocada nos islamistas, enquanto foi empossado um gabinete de “independentes”, fraco politicamente e posteriormente afastado.
Outro elemento que colaborou com a crise foi o conjunto de efeitos da pandemia de covid-19, como alto desemprego entre os jovens e problemas de abastecimento. A pandemia, entretanto, foi, no máximo, um “estopim” de uma situação que já era gestada desde as eleições de 2019. E o fruto dessa gestação é o retorno da Tunísia ao modelo de concentração de poder em uma única autoridade.
Referendo e boicote
Como suposta forma de contornar a crise, o governo de decreto de Saied apresentou um anteprojeto de nova constituição no mês de junho, que foi submetido ao referendo. O texto estabelece um regime presidencialista e dá ao presidente poderes de decretos, de nomear o governo sem precisar do voto de confiança do parlamento e também o poder de propor mudanças no texto constitucional.
O parlamento agora será bicameral, com menos poderes, e o poder judiciário também foi “diluído”, com os integrantes do Tribunal Constitucional, a suprema corte do país, nomeados pelo presidente. A proposta constitucional que concentra poderes no presidente teve apoio apenas de alguns partidos, a maioria pequenos e todos eles seculares nacionalistas. O maior deles, o Movimento Popular, de esquerda, tinha quinze deputados.
A maior parte dos partidos, entretanto, pediu pelo boicote ao referendo. Isso inclui desde as maiores forças políticas, como o citado Ennahda, islamista, até partidos pequenos. O boicote era defendido por partidos de diferentes matizes políticas, como o Partido Comunista local. O boicote proposto teve efeito e apenas 30% do eleitorado compareceu ao referendo, cerca de 2,8 milhões de pessoas.
Como comparação, as eleições de 2014, a primeira após a nova constituição, tiveram 67% de comparecimento eleitoral. A eleição presidencial, que elegeu Saied, teve 55% de comparecimento. O espírito da nova constituição proposta, a sequência de eventos no último ano e o baixo comparecimento eleitoral fazem o referendo ser passível de questionamento, não apenas hoje, mas também o será no futuro.
Não se trata de um baixo comparecimento eleitoral por algum fenômeno da natureza, ou uma eleição apertada dentro de um grande número de eleitores, mas de um ostensivo e eficaz boicote popular ao evento. Cerca de 70% dos eleitores, mais do que dizerem “não”, manifestaram que a pergunta do referendo sequer deveria ser feita. E, em algum momento, a sociedade tunisiana certamente vai cobrar a conta por esse retrocesso.
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