Reunião do Conselho de Segurança das Nações Unidas.| Foto: UN Photo/Eskinder Debebe
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Na última quarta-feira, dia 18, o governo Biden vetou uma resolução brasileira sobre a situação humanitária em Gaza no Conselho de Segurança da ONU. No Brasil, infelizmente, o tema se tornou alvo de comentários meramente partidários, sem muita substância sobre aspectos internacionais da notícia. É necessário trazer alguns aspectos menos midiáticos e o verdadeiro interesse dos EUA ao vetarem o texto.

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Primeiro, o Brasil conseguiu algo visto como quase impossível nos dias anteriores. Dialogar e articular diferentes perspectivas para uma resolução vinculante do Conselho de Segurança em um tema delicadíssimo, que envolve muitos interesses e está aflorado no debate público global. A terminologia utilizada, os parâmetros de como atingir o objetivo, tudo isso precisou ser dialogado e aparado.

O objetivo, no caso, era amenizar a catástrofe humanitária que ocorre e vai se agravar envolvendo a população civil de Gaza. Muitos deles são tão reféns do terrorismo do Hamas quanto as pessoas raptadas de suas casas. Pesquisa feita em julho e publicada recentemente pelo The Washington Institute for Near East Policy, um think tank pró-Israel dos EUA, ajuda a colocar isso em números.

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Uma resolução do Conselho de Segurança equiparando a autodefesa contra a agressão de um Estado à ação de um grupo terrorista criaria um precedente perigoso. Por exemplo, uma potência poderia simplesmente bombardear outro país alegando autodefesa contra um grupo presente naquele país.

Da população de Gaza, 62% eram favoráveis à continuidade do cessar-fogo, 50% afirmavam que o Hamas deveria moderar suas visões, 40% afirmou ter visão negativa do grupo e 70% afirmou preferir a administração pela secular Autoridade Nacional Palestina do que pelo Hamas. O Hamas é um grupo que tem a força como um de seus pilares, isso não pode ser esquecido.

Retornando ao Conselho de Segurança da ONU, o texto brasileiro condenava toda a violência e as hostilidades contra civis, todos os atos de terrorismo, apelava pela libertação imediata e incondicional de todos os reféns e, principalmente, implicaria uma “pausa” no conflito que permitisse o acesso de ajuda humanitária à Faixa de Gaza. O termo “cessar-fogo” foi vetado pelos EUA e pelo Reino Unido nas conversas.

O Brasil conseguiu os votos favoráveis de China e França, mais dos outros nove membros não permanentes do Conselho: Albânia, Equador, Gabão, Gana, Japão, Malta, Moçambique, Suíça e Emirados Árabes Unidos. Notem a presença dos Emirados Árabes Unidos, país diretamente interessado no conflito, e a do Japão, aliado dos EUA. Reino Unido e Rússia se abstiveram, o que não impediria a aprovação da resolução.

Sobrou o veto dos EUA, membro permanente do Conselho. Primeiro, o veto teve um componente de surpresa, já que, habitualmente, ele é feito na pauta, não na votação, salvo em questões de antagonismo direto. Segundo, diversas observações feitas pelos EUA já haviam sido atendidas no texto da resolução. Ou seja, o governo Biden agiu de maneira abertamente agressiva em relação aos seus interesses.

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A delegação dos EUA passou o dia anterior ao voto ignorando chamados para discussões sobre o texto. A justificativa dada foi sobre a suposta ausência do direito de autodefesa de Israel do texto, e o discurso da embaixadora dos EUA pode ser visto nos canais oficiais da ONU. Essa justificativa, além de ser só retórica, também contém problemas legais, como foi analisado por Alonso Gurmendi, professor de Relações Internacionais no King 's College.

Em resumo, a ausência da defesa explícita do direito de autodefesa se dá pelo fato do Hamas não ser um Estado, mas um ator não-estatal. Uma resolução do Conselho de Segurança equiparando a autodefesa contra a agressão de um Estado à ação de um grupo terrorista criaria um precedente perigoso. Por exemplo, uma potência poderia simplesmente bombardear outro país alegando autodefesa contra um grupo presente naquele país.

Além das discussões legais, o que é necessário trazer é outro componente, o do protagonismo dos EUA. O governo dos EUA é o maior aliado internacional de Israel e está fornecendo uma enorme quantidade de apoio militar e diplomático ao seu aliado. Já são duas forças-tarefa de porta-aviões designadas para o teatro de operações, para dissuadir outros atores que pretendam atacar Israel, mais bilhões de dólares em auxílio.

Principalmente, Joe Biden esteve em Israel, uma viagem de solidariedade e também política. O secretário de Estado Blinken também viajou ao país, bem como oficiais generais. Além dessa aliança, entram dois fatores. Um deles é que os EUA são tradicionalmente insulados de órgãos multilaterais. Poderíamos voltar ao Farewell Speech de George Washington para explicar isso, mas vamos nos ater a algo mais recente.

Em 1994, no contexto do imediato pós-Guerra Fria, John Bolton, diplomata que é um conhecido falcão da política dos EUA e foi Secretário de Segurança Nacional do governo Trump, deixou claro, em uma famosa declaração, o pensamento pelo unilateralismo defendido por muitos no aparato estatal dos EUA, não apenas por falcões ou por republicanos.

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“Não existem Nações Unidas. Existe uma comunidade internacional que ocasionalmente pode ser liderada pela única potência real que resta no mundo, os Estados Unidos, quando se adéqua aos nossos interesses”. O segundo fator que mencionamos é que ano que vem é ano eleitoral nos EUA. Joe Biden tentará a reeleição, coisa que ele havia descartado fazer quando foi eleito.

O tema Israel é muito importante em alguns setores políticos dos EUA, como tem se tornado no Brasil, e Biden precisa de votos. Enquanto uma resolução do Conselho de Segurança seria importantíssima e engajaria boa parte da comunidade internacional nas providências humanitárias, na prática, o auxílio humanitário para Gaza depende apenas dos dois países limítrofes ao território: Egito e Israel.

O Egito também cultiva boas relações com os EUA, embora já tenham sido melhores. Em crise econômica e precisando se manter em pé, o governo al-Sissi vai acolher de bom grado o papel de protagonista nessa ajuda humanitária. Ou seja, com Biden na região e o governo dos EUA podendo ele mesmo costurar um eventual acordo de ajuda humanitária, por que o governo dos EUA se deixaria eclipsar por uma resolução multilateral?

Não há nada para ser celebrado, mesmo por opositores do atual governo federal, no suposto revés brasileiro no Conselho de Segurança. Tratou-se apenas da continuidade da regra dos últimos séculos: uma catástrofe continua e inocentes morrem pois é de conveniência de alguma potência. 

E tal acordo costurado pelos EUA certamente será de menor amplitude do que a resolução articulada pelo Brasil, o que agrada Israel. O governo Biden quer e precisa desse protagonismo, para vender não só como uma vitória de sua diplomacia, esse Leviatã unilateral, mas também como uma vitória para o público interno. A própria embaixadora Linda Thomas-Greenfield, em sua fala, deixou isso claro.

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A diplomata disse que “estamos no campo fazendo o trabalho duro da diplomacia […] precisamos deixar essa diplomacia se desenrolar”. “No campo”, nesse caso, significa no Oriente Médio, conversando com os atores citados. Então, além da visão “pitoresca” do direito de autodefesa, o veto dos EUA também gira em torno do protagonismo do país e de costurar um acordo próprio que possa ser vendido ao público interno.

Esse protagonismo também poderia ser vendido em contraste ao “falatório multilateral da ONU”. Ou seja, não há nada para ser celebrado, mesmo por opositores do atual governo federal, no suposto revés brasileiro no Conselho de Segurança. Tratou-se apenas da continuidade da regra dos últimos séculos: uma catástrofe continua e inocentes morrem pois é de conveniência de alguma potência.

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]