França e Marrocos se enfrentam pela Copa do Mundo de 2022 nesta quarta-feira, dia 14 de dezembro. A vitoriosa campanha marroquina tem sido um destaque do torneio, tornando-se a primeira seleção africana e a primeira seleção de um país árabe a chegar nas semifinais da Copa do Mundo. Nosso espaço, entretanto, não é de futebol, é de política internacional. E, quando tanto se fala de uma hipotética Terceira Guerra Mundial, é interessante olharmos para quando a Primeira Guerra Mundial quase começou em uma crise no Marrocos.
A Copa do Mundo, obviamente, gera muitos memes e brincadeiras na internet. No caso marroquino, por exemplo, foram feitas conexões com o fato da História do país ser ligada aos dois países que recentemente eliminou no torneio, Espanha e Portugal. No caso espanhol, a Espanha ainda possui enclaves no Norte da África, Ceuta e Melilla, que são reivindicados em política de “integridade territorial” por parte do Marrocos. Outros territórios marroquinos foram parte do império colonial espanhol entre 1884 e 1956.
A citada Ceuta, inclusive, foi conquistada por Portugal em 1415, no início da expansão ultramarina lusitana. O “Sebastianismo” português nasce no Marrocos, após o desaparecimento do monarca Sebastião na batalha de Alcácer-Quibir, em 1578, que inicia uma crise de sucessória no trono Português. Podemos pegar diversas outras referências, como a conquista muçulmana da península Ibérica ou a posterior Reconquista. O fato é que a campanha marroquina faz sucesso nas redes sociais.
Crises no Marrocos
A Espanha não foi a única potência imperialista europeia que dominou o Marrocos, entretanto. A França, justamente o próximo adversário, também controlou diversas partes do território marroquino, em condomínio com a Espanha, a partir de 1912. Esse processo de submissão marroquina aos desenhos imperiais europeus na África não foi tranquilo, mas resultado de duas crises diplomáticas com o Império Alemão, na época o principal rival francês, que quase desencadearam em uma guerra.
A Primeira Crise do Marrocos é a Crise de Tangier, em 1905. No ano anterior, França e Reino Unido assinaram a Entente Cordial, a primeira aliança britânica com uma potência continental europeia em quase cem anos. Mais que isso, acabava com séculos de rivalidade, tanto declarada quanto potencial, entre franceses e britânicos. O propósito da aliança era claro, fornecer garantias mútuas perante um eventual ataque alemão contra um dos dois países.
É impossível definir ou resumir as relações entre França e Alemanha nesse período em uma coluna. O essencial é lembrarmos que a derrota da França é o passo essencial para a unificação do Império Alemão, em 1871. Um derrota humilhante. Não apenas os franceses perderam territórios, a famosa Alsácia-Lorena, como viram o império alemão ser proclamado no Salão dos Espelhos do Palácio de Versalhes, com a aclamação do rei da Prússia agora também como imperador dos alemães.
Uma guerra de revanche pelo território era questão de tempo. Além disso, a Alemanha de Guilherme II desejava cada vez mais seu “lugar ao sol”, como dito por um de seus ministros. Por isso, entrava em rota de colisão direta com o império britânico, e a expansão naval alemã era vista com temores em Londres. A aliança entre os antigos rivais, então, atendia ao propósito da união contra a Alemanha. Guilherme II, um monarca cujas biografias sempre destacam seu temperamento explosivo, precisava reagir.
Ele visita o Marrocos, em março de 1905, com uma grande comitiva, buscando “seduzir” o sultão Abdulaziz a tornar-se um aliado alemão. Em um discurso ostensivo, ele afirma que a Alemanha garantiria a soberania marroquina. Isso ameaçava os interesses franceses, já presentes no Marrocos, especialmente econômicos. Também ameaçavam os britânicos, que não podiam tolerar a ideia de uma posse imperial alemã, com bases navais, de frente para o estratégico Estreito de Gibraltar.
A crise durou mais de um ano, com uma série de declarações agressivas de diplomatas de todas as potências envolvidas, além de exercícios navais e mobilizações militares nas fronteiras. A Conferência de Algeciras foi organizada para debelar a crise, durando de janeiro a abril de 1906. Das treze potências presentes, apenas a Áustria-Hungria apoiava a Alemanha. No acordo final, foi estabelecida a independência do Marrocos, mas com partilha de influência entre as potências.
Nova crise e Síndrome de Francisco Ferdinando
Como consequência, França e Reino Unido começaram a cooperar de forma muito mais próxima. Isso criou as bases para a eventual aliança entre Reino Unido e o império Russo, criando a Tríplice Entente, já que russos e franceses já eram aliados. Além disso, vendo a crise como uma ameaça vizinha ao seu território, ocorreu a aproximação entre Espanha e a Entente, com a assinatura do Pacto de Cartagena, que garantiria uma neutralidade espanhola em caso de guerra.
Cinco anos depois, em 1911, temos a Crise de Agadir, ou Segunda Crise do Marrocos. Dessa vez, a Alemanha protestou contra a presença de tropas francesas no Marrocos, afirmando que isso violava o acordo de Agadir. No fundo, os alemães já haviam desistido de influência no Marrocos e aproveitavam a crise para exigir compensações. A marinha alemã envia uma canhoneira para o Marrocos, em um clássico exemplo da justamente chamada Diplomacia da Canhoneira.
Dessa vez, as maiores tensões dos alemães foram com os britânicos que, como mencionado, temiam qualquer projeção de força naval alemã no Mediterrâneo, seja em Gibraltar, seja na região de Suez. O Reino Unido chegou a mobilizar um esquadrão de sua frota, temendo uma eventual guerra. Após seis meses de crise é assinado o Tratado de Fez, com a Alemanha reconhecendo o Marrocos como protetorado francês e, em troca, recebendo territórios onde hoje são a República do Congo e Camarões.
As crises do Marrocos são essenciais para a percepção da época, de que a Alemanha estava disposta ao uso da força para garantir seu prestígio internacional e a expansão de seus domínios. Elas colaboraram para a cooperação entre Reino Unido e França e para um crescente isolamento alemão na Europa. Hoje, mais de cem anos depois, é fácil dispensar a ideia de que a então Grande Guerra poderia ter começado no Marrocos, mas isso quase foi verdade, especialmente em 1906.
Também é um lembrete do problema do pensamento que chamamos aqui em nosso espaço de Síndrome de Francisco Ferdinando, a ideia de que um conflito mundial é iminente, basta um evento imprevisto, como o assassinato de um dignitário, para iniciá-lo. Não, a Primeira Guerra Mundial foi fruto de quase cinquenta anos de diferentes crises, de uma série de fatores. E também do assassinato do arquiduque. Acima de tudo, entretanto, a Grande Guerra foi uma escolha das potências da época. O que as potências de hoje podem evitar.
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