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Filipe Figueiredo

Filipe Figueiredo

Explicações para os principais acontecimentos da política internacional

Uma Só China

O minguante reconhecimento diplomático e a independência de Taiwan

Bandeiras de Taiwan em frente ao edifício do Ministério de Relações Exteriores em Taipei (Foto: EFE/EPA/RITCHIE B. TONGO)

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O reconhecimento oficial de Taiwan diminui a cada dia. Curiosamente, esta coluna estava quase pronta quando, na noite dessa quinta-feira, dia dez, saiu a notícia de que a Nicarágua rompeu relações com a República da China, a China Taiwan, estabelecendo laços formais com a República Popular da China, a China continental. A introdução da coluna falava justamente que Nicarágua e Honduras devem, em breve, realizar essa “troca de Chinas”. Agora, resta apenas Honduras como uma questão de tempo, dentre os poucos países que ainda mantêm relações formais com Taiwan.

A nota oficial do governo nicaraguense foi bastante sucinta e pode ser transcrita na íntegra sem prejuízo. “O governo da República da Nicarágua declara reconhecer que no mundo só existe uma única China. A República Popular da China é o único governo legítimo que representa toda a China, e Taiwan é parte inalienável do território chinês. O governo da República da Nicarágua rompe relações diplomáticas com Taiwan e cessa qualquer contato ou relação oficial.”. Curto e grosso. É necessário responder duas coisas: os motivos dessa escolha de palavras e os motivos específicos da Nicarágua.

Uma Só China

Essa escolha de palavras não se deve apenas ao fato de China e Taiwan não se reconhecerem. O Brasil, por exemplo, tem relações oficiais com Israel e com a Indonésia, dois países que não se reconhecem. A questão aqui é a política de Uma Só China, adotada por ambas as repúblicas chinesas, cuja origem está na guerra civil do país, cuja fase decisiva começa em 1927. De um lado o Kuomintang, o Partido Nacionalista, de Chiang Kai-Shek. Do outro, o Partido Comunista, de Mao Tse-tung. As duas facções acordam uma trégua entre 1936 e 1945, para lutar contra o inimigo comum japonês.

Depois da Segunda Guerra Mundial, com a derrota japonesa, os dois partidos voltam a guerrear entre si e, em 1949, o conflito chega ao fim, com vitória comunista. O governo do Kuomintang, entretanto, foge para a ilha de Taiwan, onde estabelece sua capital. Imaginava-se que a queda de Taiwan seria apenas questão de tempo e esse pensamento dura até o início da Guerra da Coreia, quando os EUA usam a ilha como base. Nesse contexto, em 1955, o Congresso dos EUA aprovou a Resolução de Formosa, basicamente uma aliança militar. Desde então, existe o impasse que permanece hoje.

Para a China continental, China comunista, República Popular da China, China Pequim, a grafia que o leitor preferir, Taiwan é uma província rebelde que é parte integral do território chinês e cujo governo precisa ser “restaurado”. Para a China Taiwan, República da China ou China Taipé, o governo comunista é ilegítimo e usurpador, e o governo de Taiwan é o legítimo representante de toda a China. Para ambos, quem tem relações com um dos países, obrigatoriamente, não reconhece o outro. É uma decisão dos dois governos chineses, importante frisar.

O que explica a decisão da Nicarágua? A América Central era um dos últimos bastiões pró-Taiwan do mundo. Isso é consequência do fato de que, quando os países iniciaram sua “transição chinesa”, ao final da década de 1960 e início da da década de 1970, os países da região eram governados por ditaduras anticomunistas. Nem a mudança do reconhecimento de Washington, no governo Nixon, mudou a postura desses países. A Costa Rica formalizou suas relações com Pequim em 2007, o Panamá em 2017 e El Salvador em 2018. Os dois últimos, inclusive, durante governos de direita.

Existem, é claro, os motivos macropolíticos que explicam essa transição. A China continental é um dos maiores países do mundo, das maiores economias, uma potência nuclear e possui um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU. Sob uma ótica realista, faz mais sentido ter relações diplomáticas com Pequim do que com Taipei. Não é à toa que um governo republicano dos EUA trocou sua aliada insular, ideologicamente mais próxima, pela China continental. Existia também a estratégia de atrair Pequim para longe de Moscou, mas isso é outro tema.

O contexto específico da Nicarágua contribui para a decisão. Depois das eleições ilegítimas na Nicarágua em novembro, Daniel Ortega se viu sob mais pressão dos EUA. A maneira de contrabalançar essa pressão é se aproximar da potência rival, a China. Pequim também corteja Manágua desde a década passada, pensando na possibilidade de construir um canal que ligue os oceanos Pacífico e Atlântico, para concorrer com o canal do Panamá e, principalmente, não depender de boas relações com os EUA para transitar navios militares na região. O lago Nicarágua facilitaria essa construção.

Como curiosidade, inclusive, a Nicarágua foi uma das opções para a construção do canal original, no início do século XX. Finalmente, a Nicarágua sofreu bastante com a pandemia, com um governo negacionista e números oficiais maquiados. Receber investimentos chineses para recuperar sua economia não seria nada mal. Já as eleições hondurenhas, também no mês passado, consagraram Xiomara Castro como vencedora, a primeira candidatura de esquerda vencedora da História do país. Ela já sinalizou a “troca de China” como uma possibilidade de seu governo.

Honduras e independência

Ao contrário de Noriega, entretanto, ela não está isolada, e teve sua eleição amplamente reconhecida. Inclusive pelos EUA, que possivelmente vai tentar convencer o novo governo hondurenho em manter relações com Taiwan. Investimentos, questões migratórias e combate ao crime organizado são algumas das opções na mesa. Por outro lado, a coluna não recomenda ao leitor que coloque dinheiro apostando na manutenção dos elos entre Honduras e Taiwan. Na verdade, de certo modo, a mudança entre reconhecimento chinês é um processo quase irreversível.

Bandeiras de países aliados de Taiwan em frente ao complexo de embaixadas em Taipei, 10 de dezembro (Foto: EFE/EPA/RITCHIE B. TONGO)

Foram vários reveses para Taiwan nos últimos anos. Hoje, apenas catorze estados reconhecem o país insular. O Paraguai é o único sul-americano, por razões comerciais. Guatemala, Belize e Honduras na América Central. São Cristóvão e Neves, São Vicente e Granadinas, Santa Lúcia e Haiti no Caribe. Ilhas Marshall, Nauru, Palau e Tuvalu, todos pequenos países insulares do Pacífico. Eswatini como o único africano e a Santa Sé fecham a lista. Nenhuma grande potência, convenha-se. E quase todos eles possuem argumentos para realizar a “troca chinesa”.

Deve-se pensar caso chegue o dia em que nenhum país do mundo reconheça Taiwan. Os independentistas taiwaneses, que compõem o atual governo, inclusive, podem usar isso como mais um elemento para sustentar que a ilha precisa abandonar a política de Uma Só China. Fazer isso implicaria abrir mão do “restante” da China, mas declarar total independência, o que não seria aceito por Pequim. Curiosamente, o crescente isolamento de Taiwan desafia o status quo, e romper com esse status quo poderia implicar em um conflito. A bola agora está com Honduras.

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