Desde o ano passado fala-se de um "novo Talibã", agora um grupo supostamente mais moderado, representativo e disposto a ser reconhecido pela comunidade internacional. Essa tecla começou a ser batida com a intensificação das negociações entre o governo Donald Trump e o grupo, em Doha, no Qatar. Subiu alguns degraus com os encontros entre líderes do Talibã e representantes da Turquia e da China. Pouco a pouco, entretanto, o discurso e a propaganda vão se separando da realidade, que mostra sua cara.
Durante a evacuação de Cabul, por exemplo, chegou-se ao ponto do governo Joe Biden cooperar com o Talibã. Ok, pragmaticamente, seria necessária uma cooperação para garantir o embarque das pessoas, mas ela não precisava chegar ao ponto de as autoridades dos EUA compartilharem listas de pessoas de interesse dos EUA. O que seria uma maneira de facilitar a identificação dessas pessoas nos pontos de controle do Talibã pode-se, e vai, ganhar contorno de lista de pessoas, ou familiares, à serem perseguidos e assediados no futuro próximo.
O ministro das Relações Exteriores britânico, Dominic Raab, disse que, embora não exista um "reconhecimento previsível" do governo talibã, o Reino Unido vai "negociar diretamente" com o grupo em "negociações pertinentes". Isso, claro, falando dos governos ocidentais, já que a cooperação com o Qatar e o Paquistão, dentre outros, é bastante clara. Os qataris, inclusive, estão realizando as adaptações técnicas necessárias para a reabertura de operações do aeroporto internacional de Cabul, que muito provavelmente será renomeado, já que o ex-presidente Hamid Karzai não é bem visto pelo Talibã.
Música
A expectativa, e de certo modo promessa, então, é de um Talibã moderado, adepto do diálogo, da cooperação e mais representativo. Pois bem. Na quarta-feira dia 25 de agosto, Zabihullah Mujahid, um dos porta-vozes do Talibã, disse em entrevista que a música não será tolerada em público e que "a música é proibida no Islã". Essa é uma interpretação extremamente radical e a vasta gama de artistas de origem muçulmana, incluindo música tradicional, mostra isso. De qualquer maneira, o Instituto Nacional de Música do Afeganistão, fundado em 2010, já fechou suas portas.
Durante o primeiro emirado afegão, na década de 1990, instrumentos musicais eram destruídos, salvo os de percussão, como o tamborim daf, já que esse tipo de instrumento está presente em hadices, o conjunto de leis e relatos sobre a vida de Maomé. Dessa vez, o porta-voz, talvez de maneira um pouco cínica, disse que “esperamos poder persuadir as pessoas a não fazerem essas coisas, em vez de pressioná-las." Três dias depois da entrevista, em 28 de agosto, opositores denunciaram que o músico popular afegão Fawad Andarabi teria sido executado pelo Talibã.
No dia dois de setembro, foi a vez do principal ativista afegão LGBT de direitos humanos, Nemat Sadat, denunciar a repressão corrente do Talibã. Ele reside nos EUA e faz parte de um grupo de quinze pessoas que busca articular a evacuação de cerca de 700 pessoas LGBT do Afeganistão. Sadat afirmou que a comunidade internacional negligenciou essas pessoas, que estão vulneráveis perante o Talibã e correm risco de serem mortas. Mais que isso, ele compartilhou o trágico destino de um homem homossexual de Cabul que foi publicamente espancado e decapitado.
Execução sumária
Segundo Sadat, pessoas LGBT, especialmente homens homossexuais, enfrentam uma "sentença de morte automática com base em sua mera existência". Algo bastante distante da propaganda de Talibã "paz e amor", disposto à reconciliação e ao perdão de seus antigos inimigos. É importante colocar em perspectiva que homossexuais já enfrentavam discriminação antes do Talibã, e que, mesmo sob a república que ruiu, a "sodomia" era crime, punível com até dois anos de prisão. Além disso, famílias costumam expulsar essas pessoas de sua convivência, ou até matar para preservar uma suposta "honra familiar".
Cenário parecido ocorre no Paquistão, por exemplo, vizinho ao Afeganistão. Ao mesmo tempo que não é um cenário exclusivo do Talibã, é inegável que a violência e autoritarismo do grupo deixa o contexto afegão com poucas comparações possíveis. Uma pessoa ser arrastada até a rua, espancada e decapitada não é algo aceitável. E o leitor não duvide que isso possa ser feito, já que as imagens dos anos 1990 ainda assombram pela internet, como as da morte do ex-presidente socialista Mohammad Najibullah.
"Oras, mas isso é da religião deles, isso é o normal na região". Na mesma semana em que o Talibã matou alguém por sua sexualidade, Bangladesh deu um exemplo na direção oposta. O país é um dos dez mais populosos do mundo, onde 90% das pessoas são muçulmanas, a maioria sunitas. No último dia 31 de agosto, o Tribunal Especial Anti-Terrorismo do país condenou à forca seis homens ligados ao grupo Ansar al-Islam, um grupo por sua vez ligado à Al-Qaeda. "À forca" nesse caso é literal, já que a pena de morte em Bangladesh é cumprida via enforcamento.
Os motivos da condenação são os assassinatos, em 2016, de dois ativistas LGBT de direitos humanos. Um deles, Xulhaz Mannan, trabalhava na embaixada dos EUA em Daca e era fundador da revista Roopbaan, a primeira publicação voltada ao público gay de Bangladesh. A outra vítima era seu companheiro, Mahbub Rabbi Tonoy, e eles foram mortos a facadas no apartamento em que viviam. No país, inclusive, relações homossexuais ainda são criminalizadas, não se trata de um paraíso progressista. O que não quer dizer que pessoas possam assassinar as outras pela sua orientação sexual.
Os dois últimos governos dos EUA acreditaram que o Talibã cumpriria suas promessas. Erraram. O histórico do grupo é marcado pela perfídia e pela falta de concessões. Existem pessoas que acreditam nesse "novo" Talibã moderado? Aparentemente sim. E infelizmente, já que nada de concreto indica esse caminho. Na verdade, indicam o caminho oposto, o da violência e da intolerância. Quem quiser ser feito de trouxa, com o perdão do português, que seja, mas não será por falta de aviso.