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Muito se falou na imprensa brasileira nos últimos dias sobre o encontro entre Lula, ex-presidente brasileiro, e Emmanuel Macron, atual presidente francês. Existem alguns pontos que precisam ser analisados sobre esse encontro. Alguns desses podem ser repetitivos, outro ponto certamente não será, já que muito se falou sobre as relações entre Brasil e França, mas o que esse encontro pode significar para Macron?
Primeiro, a parte factual. O ex-presidente Lula, provável candidato ao cargo em 2022, está realizando uma viagem pela Europa para avaliar sua situação e também sinalizar ao público, tanto externo quanto interno, que seria aceito pela comunidade internacional em um eventual terceiro mandato. Todas aquelas questões de "acalmar o mercado" e também a de garantir respeito internacional ao pleito.
Em entrevista na França, Lula negou essa possibilidade, afirmando que o objetivo da viagem é "restabelecer a credibilidade do Brasil no exterior e mostrar que o país é infinitamente melhor do que o atual governo". Ok, Lula pode tentar amenizar a situação e esconder as cartas, mas a viagem faz parte de uma "ofensiva de imagem" em relação ao futuro eleitoral brasileiro, mesmo que desvinculado dele.
Como parte dessa viagem, Lula esteve em Paris, onde se encontrou com líderes políticos franceses de esquerda, como a prefeita da cidade, Anne Hidalgo, recebeu um prêmio e participou de eventos. Principalmente, Lula foi recebido pelo presidente francês na residência oficial, o Palácio do Eliseu. Tiveram uma reunião que, prevista para durar uma hora, durou cerca de uma hora e meia.
Interesses envolvidos
Segundo o porta-voz de Macron, Gabriel Attal, os dois discutiram "temas fundamentais", como impacto social da crise de saúde, questões climáticas, desmatamento, combate à pobreza e relações entre Brasil e União Europeia. Pensando pragmaticamente, deixando questões ideológicas ou preferências partidárias, o que esse encontro significa? O que cada envolvido buscou com ele?
São perguntas importantes em qualquer evento político, mas, nesse caso, ganham outra camada de importância. Macron é o presidente francês. Lula foi presidente brasileiro, e pode até vir a ser novamente, mas não é. Os tempos verbais dessas duas frases são tudo. Por qual motivo Macron investiria mais de uma hora de sua agenda com alguém que é, em suma, um cidadão privado, não um chefe de governo ou de Estado com poder?
Já falamos quais seriam os ganhos de Lula: relações públicas de sua imagem e a construção de uma maior aceitação de uma eventual candidatura sua, seja para o público interno, seja para o público externo. Nesse sentido, ele se encontrou, dias antes, com Olaf Scholz, futuro chanceler alemão e, dias depois, com Pedro Sánchez, o chefe de governo da Espanha, ambos social-democratas.
Existe um ganho mútuo, o de ambos alfinetarem o atual presidente brasileiro, Jair Bolsonaro. Como Macron definiu no último G20, as relações entre Brasil e França "já foram melhores", e as relações entre os governos Bolsonaro e Macron são péssimas, para se dizer o mínimo. Tanto numa escala macro, com desavenças estratégicas, quanto numa escala micro, com episódios de grosserias públicas.
A França critica os índices de desmatamento brasileiros e usa isso como arma no seu próprio protecionismo agrícola. Também coloca o tema na mesa no contexto do acordo comercial entre União Europeia e Mercosul. Essa é uma complexa disputa de interesses entre França e Brasil. Junto disso, na escala micro, vieram as nem um pouco complexas, e desnecessárias, grosserias.
Um filho do presidente brasileiro chamou Macron de "idiota", um ministro chamou o francês de "calhorda", e o presidente e seu principal ministro, Paulo Guedes, chegaram à tecer comentários sobre a primeira-dama francesa ser "feia". O comportamento, além de pueril, acaba por enfraquecer algumas das posições brasileiras, mesmo as legítimas. Na época, Macron disse desejar que o Brasil tenha um presidente "à altura" do cargo.
Essa frase é interessante pois, ao receber um prêmio, Lula afirmou desejar "que Macron seja um parceiro extraordinário quando o Brasil tiver um presidente que saiba ser presidente". Ou seja, na perspectiva de Lula, ele aparece como um "estadista", aproximando o Brasil de outros países no "vácuo" de Bolsonaro. Na perspectiva de Macron, ele sinaliza se aproximar do Brasil e colocando os problemas nas costas de Bolsonaro.
Relações históricas e eleições
Importante lembrar, além da alfinetada mútua, que as relações entre Brasil e França são historicamente intensas, desde o século XIX, alternando momentos de quase aliança com momentos de maior distensão. Por exemplo, a missão militar francesa moldou as forças armadas brasileiras após a Grande Guerra e, quando os EUA recusaram a venda de caças supersônicos, a França ofereceu os Mirage III, ao final da década de 1960.
Ao mesmo tempo, questões como a chamada Guerra da Lagosta, em 1962, e o fornecimento clandestino de material nuclear para o Iraque, na década de 1980, foram momentos de tensão nessa relação. No caso do governo Lula as relações foram de intensa proximidade, culminando no programa ProSub, o maior programa armamentista da História do Brasil e que concluirá o projeto de um submarino nuclear brasileiro.
Finalmente, existe outro elemento nessa equação. Não são apenas Bolsonaro e Lula que enfrentarão uma eleição em 2022, Macron também. Já falamos de eleições francesas antes aqui no nosso espaço, e Macron possui dois problemas eleitorais. Primeiro, a falta de um partido estruturado e com capilaridade. Segundo, o fato dele ser um candidato "menos pior", que atrai o eleitorado para o centro, mas enfrenta certa desconfiança.
Nesse caso, desconfiança tanto dos mais à esquerda quanto dos mais à direita. Macron vive, então, numa espécie de caminhada numa corda, precisando pender para um lado e depois para outro. Para agradar o eleitorado de direita, por exemplo, adotou uma política mais rígida em relação ao extremismo islâmico e também em relação aos planos de entrada da Albânia e da Bósnia na União Europeia.
Para Macron, encontrar Lula serve para acenar para a esquerda francesa, que tem o ex-presidente brasileiro em alta conta. Lula é uma figura popular entre o eleitorado de Jean-Luc Mélenchon, por exemplo, com quem o brasileiro se encontrou. A tarefa do Macron equilibrista é apenas uma: ele precisa garantir a ida ao segundo turno do pleito previsto para abril de 2022.
As pesquisas atuais indicam cerca de 24% da intenção de voto em Macron. É pouco, mas, o coloca em primeiro. Em qualquer cenário de segundo turno ele seria vencedor, pela mera rejeição aos seus possíveis oponentes. Tanto faz Le Pen, Mélenchon, Bertrand ou Zemmour. Ainda assim, ele precisa garantir o segundo turno. Ganhar alguns votos na esquerda seria interessante para Macron, e o encontro acaba servindo, também e para ambos, como um cabo eleitoral antecipado.