Seja por ignorância, seja para encurtar manchetes, a imprensa popularizou algo que não existe, a ideia de que “a ONU” é uma entidade própria que faz alguma coisa. ONU recomenda algo, ONU determina isso, ONU condena alguém. O caso mais recente, que despertou reações apaixonadas das mais diversas, foi a de que “a ONU” teria determinado que Lula possa ser candidato presidencial.
Daí para notícias falsas e boatos de que “a ONU” pediu pela soltura do ex-presidente, declarou que ele é inocente, de que exista uma conspiração mundial para acabar com o país, etc. Seria curioso, caso não fosse preocupante, como uma coisa que é tão presente no discurso público e político seja tão pouco compreendida. No caso, a Organização das Nações Unidas. Peço que o leitor me acompanhe até o final, indo além de eventuais preferências individuais.
“A” ONU não existe
O próprio nome deixa isso claro: Organização das Nações Unidas. Não tem vontade própria, não realiza ou executa planos particulares e não tem o poder de passar por cima da soberania de outros Estados sem a concordância da comunidade internacional. A ONU é uma organização internacional, que une as nações, com o perdão da redundância. São os países que determinam o quê, como e quando algo será feito ou não. A ONU é mera expressão da vontade coletiva dos Estados nacionais.
É composta de seis órgãos, cada um com sua função, jurisdição, composição e procedimentos. A Assembleia Geral, o Conselho de Segurança, o Secretariado, o Conselho Econômico e Social, e a Corte Internacional de Justiça; na prática, são cinco órgãos, já que o Conselho de Tutela está inativo desde 1994. Além desses, existem diversas agências especializadas, fundos e acordos. Alguns mais conhecidos são o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial. Sim, o FMI, tão presente no debate público brasileiro, é parte desse conjunto, comumente chamado de “Sistema ONU”.
Para brevidade, tome-se o exemplo do Conselho de Segurança da ONU, o único órgão que pode autorizar o uso da força. E esta autoridade está prevista na Carta das Nações Unidas, o acordo que formou a ONU logo após a Segunda Guerra Mundial. Todos os membros estão sujeitos aos seus artigos, assim como um associado concorda com as regras de um clube ao entrar, ou os condôminos de um edifício. Lembrete importante neste tema é que as resoluções do Conselho de Segurança são vinculantes, ou seja, os países-membros possuem obrigação de acatar, e podem ser punidos se não o fizerem.
Por outro lado, mesmo tendo o poder do uso da força pelo Conselho de Segurança, “nada na presente Carta prejudicará o direito inerente de legítima defesa individual ou coletiva no caso de ocorrer um ataque armado contra um Membro das Nações Unidas”. Ou seja, a soberania dos Estados continua existindo. E, se não existe “a ONU”, quem decide pelo uso da força ou imposição de sanções? O Conselho é formado por cinco membros permanentes e dez rotativos. Os permanentes são EUA, Rússia, China, Reino Unido e França.
Já os membros rotativos são eleitos pela Assembleia Geral, que reúne todos os países-membro da ONU. Cumprem mandatos de dois anos, em uma distribuição que permita que todas as regiões do mundo estejam representadas. Três países africanos, um da Europa oriental, e dois países nos três seguintes blocos: Europa ocidental; América Latina e Caribe; e Ásia e Pacífico. Os cinco países permanentes possuem o famoso “poder de veto”, a prerrogativa de retirar um tema de discussão da pauta ou então vetar sua aprovação durante uma votação.
Então, para que novas sanções da ONU contra a Coreia do Norte, por exemplo, possam ser impostas, os cinco países permanentes precisam aceitar essa decisão, e mais quatro países rotativos, totalizando ao menos nove votos.
Tomando um exemplo de resolução polêmica e recente, a 1973, de 2011, que autorizou uma intervenção militar na guerra civil na Líbia, que culminou com a morte de Kadafi e o fim de seu governo. Ela foi proposta por três membros do Conselho: França, Reino Unido e Líbano. Dez integrantes foram favoráveis: os três citados, mais Bósnia e Herzegovina, Colômbia, Gabão, Nigéria, Portugal, África do Sul e EUA. Cinco membros do conselho se abstiveram: Brasil, China, Alemanha, Índia e Rússia.
Não foi alguém, “a ONU”, uma pessoa, um ditador mundial, uma coisa amorfa que determinou essa intervenção. Foi a maioria dos representantes que integram o principal órgão da comunidade internacional, assim como, em ocasiões, um país bloqueia uma decisão pois contraria seus interesses. Isso é importante de se ter em mente, pois os responsáveis por cada decisão ou omissão, cada voto ou abstenção, tem nome. Não foi “a ONU”, foi via ONU; parece a mesma coisa, mas não é. São Estados nacionais e governos que, pela maioria coletiva, adotam uma linha de ação, reunidos em uma organização que unicamente serve de fórum de diálogo e cooperação, sem poder próprio.
O caso da UNESCO
Em Outubro de 2017, o governo dos EUA decidiu novamente retirar o país da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura, a Unesco. Embora seu objetivo principal seja o combate ao analfabetismo no mundo, financiando a formação de professores e a criação de escolas em regiões de risco, ela é mais conhecida do público pela organização do programa de Patrimônio Cultural da Humanidade.
Não é a primeira ausência dos EUA na organização. O país esteve ausente de 1984 a 2003, e interrompeu suas contribuições financeiras em 2011, estando sem voto desde 2013. Uma das razões da nova retirada é a acusação de viés anti-Israel por parte da Unesco; inclusive, Israel também anunciou sua retirada da organização. O estopim dessa reação foi a resolução aprovada na 200ª sessão da organização, em Paris, em 13 de Outubro de 2016, especialmente o item 25 do documento.
O documento também gerou repercussão no Brasil. Ele foi aprovado com 24 votos favoráveis, seis contra, duas ausências e 26 abstenções; sim, mais abstenções do que votos favoráveis. A culpa é “da Unesco” ou de seu suposto viés? Não, a responsabilidade pela aprovação do texto recai sobre os países que votaram à favor, e também sobre os que se abstiveram.
Quando olhamos a lista dos votos, 11 dos países favoráveis não possuem relações com Israel; outros, embora mantenham relações diplomáticas, são inimigos históricos, como o Egito. E os restantes? Dentre outros, México, Moçambique, Nigéria, Rússia, China e também o Brasil. No campo das abstenções, temos países com grande comunidade judaica, como a Argentina e a França; países modernos, como o Japão, a Coreia do Sul; e também países diminutos possuem direito ao voto, como São Cristóvão e Nevis.
Por qual motivo esses países votaram dessa maneira? Essa é a pergunta que deve ser feita, embora seja muito mais difícil. Optar por dizer que “a Unesco é anti-Israel” é mais fácil. E são esses governos que deveriam ser cobrados por suas decisões, especialmente por quem as considera equivocadas. E o suposto viés anti-Israel do Sistema ONU é apenas constatação de uma problemática questão quantitativa.
Existem mais países inimigos de Israel, ou aliados a esses inimigos, do que países aliados. Ou, então, países dispostos a “comprar uma briga” nessa votação. Um governo atender ao desejo de Estado A pode significar desagradar o Estado B; e o país desse governo pode ter relações comerciais importantes com o tal Estado B, ou então precisa do apoio de B em uma votação futura sobre outro tema.
Um exemplo histórico ilustra bem isso. O Brasil, em 1975, apoiou a condenação do sionismo como uma forma de racismo na Assembleia Geral da ONU. Por ser anti-Israel, por ser um governo “esquerdista” (governo Geisel, lembre-se), ou algo do tipo? Não. Foi como moeda de troca para angariar apoio dos países árabes em uma eventual disputa sobre a usina de Itaipu e o uso de águas de rios que cruzam fronteiras internacionais.
É um sistema de representação que pode ser melhorado? Sem dúvidas, mas as coisas são mais complexas do que “viés” ou outras acusações. Nesse caso, não existe “a Unesco condenou Israel”. Existe um fórum, formado por cinquenta e oito países, escolhidos de acordo com regras aceitas por eles, que votou esse tema. A Unesco, assim como qualquer integrante do Sistema ONU, vai apenas agir baseada nos parâmetros estabelecidos pela vontade coletiva dos Estados, os verdadeiros responsáveis.
A ONU e a sua vida
“Tá, mas a ONU não me afeta em nada”. Outra frase muito comum. Não se trata de negar os problemas do Sistema ONU e o que pode ser melhorado. Dezenas de teses, congressos e documentos já foram elaborados, desde representação no Conselho de Segurança até melhor aproveitamento dos recursos financeiros. Daí a negligenciar a compreensão desse tema no século 21, vai uma distância bem grande.
Para manter a aula de História breve. Muitas das ideias atuais sobre o diálogo internacional surgem no final do século 19, período da Segunda Revolução Industrial. Crescente comércio pelos mares, expansão das economias, das ferrovias, das comunicações, maior contato entre pessoas de lugares distantes, maior necessidade de regras comuns para os negócios.
Neste espírito é formada a Cruz Vermelha e são assinadas convenções como as de Genebra e as de Haia, com a sempre lembrada participação do jurista brasileiro Ruy Barbosa. Para destruir o Estado nacional? Não, para assegurar o diálogo e o contato entre eles, em parâmetros comuns.
Pela noção de que uma epidemia de gripe espanhola em um local não é “problema deles”, mas potencial problema de todos. A noção do poder mortal das epidemias é talvez a melhor maneira de mostrar o impacto da cooperação internacional na vida cotidiana. O exemplo da gripe espanhola se aplica ao caso da Cruz Vermelha, independente e que antecede a ONU em oitenta anos.
No Sistema ONU está a Organização Mundial da Saúde. Ela investiga cerca de 200 potenciais casos de epidemia por ano, e cerca de 20 deles necessitam de uma resposta internacional, como o ebola. A resposta é internacional não apenas por questões de precariedade em certas regiões, mas também porque vírus e bactérias não conhecem o conceito de fronteira.
A contenção e monitoramento internacional impede potenciais epidemias. Em termos mais diretos, apenas no século 20, a varíola matou entre 300 e 500 milhões de pessoas. E, graças ao esforço de diversos países, coordenado em escala global pela OMS, a varíola foi erradicada. Este programa internacional que durou 13 anos não apenas poupou vidas (quem sabe a de uma pessoa querida), mas poupa muito dinheiro, já que a prevenção e a vacinação diminuem gastos médicos futuros drasticamente.
A melhor definição veio de um ex-secretário-geral, o sueco Dag Hammarskjöld. “A ONU não foi criada para levar a humanidade ao paraíso, mas para salvá-la do inferno”. Por isto que, infelizmente, muitas vezes não se percebe o impacto cotidiano das decisões tomadas no Sistema ONU. No período da Guerra Fria isso ficava muito mais claro, já que, por décadas, o Conselho de Segurança era o principal fórum de diálogo entre EUA e URSS, antes da linha-direta chamada popularmente de “telefone vermelho”.
Mesmo depois, foi no âmbito da ONU que a segurança mundial foi discutida e mantida. E as diversas crises e disputas do século 21 deixam clara a necessidade de tais fóruns permanentes de diálogo. Não apenas crises políticas. Como mencionado, o FMI e o Banco Mundial fazem parte desse sistema internacional, com o propósito de cooperação econômica em momentos de necessidade.
Escolhas
Foi uma decisão do Comitê de Direitos Humanos que esteve no centro da polêmica brasileira. Ele é formado por 18 indivíduos para considerar relatórios sobre o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, e quaisquer petições individuais relativas aos 116 Estados-partes do seu primeiro protocolo adicional; o pacto é assinado por 171 estados, ou seja, 55 países optam por não assinar o protocolo. Os Estados, como entidades soberanas, assinam e ratificam sua participação no Comitê.
O debate jurídico de como o direito interno brasileiro recebe o Comitê é outra discussão, que sequer é pertinente à esta coluna. O ponto aqui é mostrar que não há uma violação de soberania quando um país aceita livremente participar de um órgão. Repete-se a analogia do condomínio. E os integrantes do Comitê? Estes indivíduos são escolhidos na Assembleia Geral da ONU, pelo voto dos países-membro.
Existe a sensação de ser algo criado arbitrariamente pelo desconhecimento dos procedimentos. Não são 18 pessoas impostas pelo universo ou escolhidas por um conselho secreto de xamãs. São eleitos pelos Estados nacionais, em votações registradas. Em suma, não foi “a ONU” que recomendou alguma coisa sobre Lula, pois esta entidade indefinida sequer existe. Foi um comitê dentro do âmbito da ONU, formado por indivíduos escolhidos por países.
O Conselho Econômico e Social, frequentemente acusado de ser uma ferramenta de “agendas escusas”, é um caso similar aos explicados. Ele é formado por 54 países, eleitos na Assembleia Geral para mandatos de três anos. Além disso, o conselho, suas comissões e agências consultam uma miríade de organizações civis e nacionais. E, principalmente, ele executa o que é acordado pelos Estados-membros soberanos.
Um país não precisa admitir um processo do qual ele não fez parte ou não concordou em participar. Se não fosse assim, certamente as mulheres sauditas não teriam o direito de dirigir um carro apenas em 2018. É a vontade soberana dos países que prevalece, especialmente em temas que não são de segurança internacional.
Novamente, críticas e melhorias podem, e devem, ser feitas aos processos seletivos e de formulação de políticas. É o caso da eleição do secretário-geral, considerada opaca. O cargo é o de chefia do Secretariado da ONU, ou seja, o órgão de “mãos na massa”. Um chief administrative officer, um administrador e coordenador. Não há poder decisório concentrado nas mãos do ocupante do cargo. Não é o “presidente do mundo”, outra ilusão criada.
“I want to believe”
Claro, quem quiser ver alguma conspiração ou interesse escuso, verá. Inclusive, quanto mais evidências mostradas que desmintam uma conspiração, mais forte se torna a crença nela. Infelizmente, provavelmente esse texto será acusado de ser movido por interesses escusos ou como parte de algum enorme complô, mesmo em um veículo de comunicação de repercussão nacional.
Se a intenção desta coluna semanal é ampliar a compreensão sobre o mundo que nos cerca, isto passa obrigatoriamente pelo esclarecimento da principal organização internacional. Em suma: “a ONU” não existe. Não se deixe levar por essa simplificação. O que existe são os países soberanos e suas vontades e interesses. Desnecessário dizer que, dado o formato e o espaço, essa é uma perspectiva resumida, mas é o primeiro passo. Um passo necessário.
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Caso o leitor deseje uma leitura rápida para iniciar um aprofundamento no tema, faço uma recomendação gratuita. A Fundação Alexandre de Gusmão (FUNAG) é, por assim dizer, a editora do Ministério de Relações Exteriores, sem fins lucrativos. Ela publica uma coleção chamada Em Poucas Palavras. São livros pequenos, que, segundo o site da FUNAG, “reúnem estudos e pesquisas científicas em linguagem mais didática, com intuito de divulgar conhecimento sobre temas relevantes para as relações internacionais e para a política externa brasileira”. Podem ser baixados gratuitamente em diferentes formatos. Divirtam-se!
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