Por quanto tempo um presidente deve ficar no cargo? O Tribunal Supremo Eleitoral da Bolívia autorizou a candidatura do atual presidente do país, Evo Morales, às eleições primárias que ocorrerão no dia 27 de janeiro de 2019. Na prática, autoriza Evo à concorrer nas eleições gerais de outubro. A Bolívia passará pela novidade de primárias intrapartidárias, entretanto, o partido de Evo, MAS (Movimento ao Socialismo), formalizou apenas a chapa do atual presidente.
Evo é o líder do partido desde 1998 e, desde 2006, o presidente boliviano, o primeiro presidente indígena do país desde a independência, em 1825. Antes de ser eleito, em 2002, Evo foi o segundo colocado nas eleições presidenciais, destacado pelo seu papel como líder de protestos contra o governo por mudanças na distribuição das divisas da exploração de gás natural. Nos últimos doze anos, Evo tornou-se uma figura divisiva internacionalmente, atraindo admiradores e críticos.
No Brasil, sua proximidade aos presidentes Lula e Dilma colaborou para essa divisão. Internamente, seu governo é marcado por expressivo e perene crescimento econômico, com uma média de 4,7% ao ano, além de diminuição da desigualdade. Junto com isso, críticas de centralização do poder e de permissividade com o tráfico de drogas, devido ao plantio de coca. Evo defende o plantio como manifestação tradicional indígena boliviana.
Sequência de eleições
Evo Morales iniciou seu primeiro mandato em 2006. Dois anos depois, resistiu com 67% dos votos a um referendo de impeachment. No ano seguinte, em 2009, a Bolívia aprovou uma nova constituição, via seu legislativo e um referendo popular. A nova carta transformou a Bolívia em um estado secular, ampliou mudanças e direitos sociais e substituiu a constituição de 1967, de uma das várias ditaduras militares bolivianas.
A nova constituição determina que o presidente pode exercer o limite de dois mandatos consecutivos, cada um de cinco anos. A carta, entretanto, desconsidera mandatos anteriores na conta, já que a lei não deveria retroagir. Ou seja, quando Evo vence as eleições e é empossado em 2010, foi como seu primeiro mandato, autorizando-o a disputar as eleições de 2014, quando venceu com 61% dos votos.
Pela constituição, essa deveria ser a última eleição de Evo, mas o entendimento do TSE boliviano autoriza Evo à disputar uma terceira eleição pela atual constituição, a quarta em uma contagem geral. A autorização foi baseada em um entendimento do Tribunal Constitucional boliviano. Em novembro de 2017, a corte estabeleceu que limitar mandatos era uma forma de violação de direitos políticos e humanos.
A Bolívia disse não
A frase “A Bolívia disse não” está presente em cartazes de diversos protestos contra a nova decisão. Em fevereiro de 2016, em referendo para reformar a constituição e autorizar uma nova eleição, Evo Morales foi derrotado, com 51,3% dos eleitores votando contra a mudança constitucional. Ou seja, a autorização do TSE e o próprio desejo do presidente vão contra a decisão popular afirmada pelo referendo.
Além disso, não se pode alegar que a vitória, mesmo que apertada, não foi representativa da população, já que 84,4% do eleitorado compareceu às urnas. Essa é uma crítica que, mesmo quando se trata de uma figura divisiva como Evo, deveria vir de todos os lados do espectro político. Especialmente dos setores à esquerda, que enxergam méritos em Evo, um deles justamente o de estabelecer referendos populares para decisões políticas. Do que adiantam se podem ser atropelados quando conveniente ao poder?
As críticas e a suspeição aumentam motivadas pelo fato de que cerca de metade dos juristas do Tribunal Constitucional, cuja decisão baseou a autorização do TSE, fazem ou fizeram parte do governo boliviano. Claro, isso é algo comum; por exemplo, o mais recente indicado ao STF brasileiro é um ex-Ministro da Justiça. Quando se trata de uma mesma figura que domina a política do país por mais de uma década, entretanto, diminui-se o revezamento de perspectivas e a renovação das cortes.
Traumas e experiências históricas
Os bolivianos e sua constituição limitarem os mandatos presidenciais do país não é apenas uma inspiração em modelos como os vizinhos Brasil e Argentina. É também resultado de um trauma histórico. Na verdade, comparando a História de cada país e os atuais sistemas políticos desses mesmos países, observa-se um curioso padrão. Nações que passaram por períodos de instabilidade política ou de centralização de poder mascarada por eleições tendem a rejeitar a ideia de até mesmo uma reeleição.
A própria Bolívia é exemplo do primeiro caso. Somente no século XX, a Bolívia teve mais de quarenta mandatários. Golpes, autogolpes, fraudes eleitorais, um cenário de instabilidade sistêmica que criou a demanda por regras eleitorais claras e que garantam a transição de poder de maneira pacífica. No segundo caso está o México, por exemplo. O general Porfírio Díaz foi o mandatário mexicano de 1876 à 1910, ano da revolução.
Após ser eleito em 1876, Díaz cumpriu as regras e deixou o poder para o vencedor das eleições de 1880. Quatro anos depois, disputou e venceu as eleições. Excetuando esse breve hiato entre 1880 e 1884, Porfírio Diaz ficou no poder vencendo todas as eleições que disputou. Mudou as regras para autorizar a reeleição e, posteriormente, mudou novamente para retirar o limite de mandatos.
Seu partido adotou inclusive o nome Partido Reeleicionista; a permanência de Diaz no poder era sua única bandeira, em um governo centralizado e cada vez mais autoritário. E, claro, Díaz “venceu” todas as eleições, com fraudes generalizadas e violência eleitoral. O aprendizado do período chamado de Porfiriato está em uma das primeiras medidas da Revolução Mexicana, consagrada na Constituição de 1917 e em vigor até hoje: apenas um mandato de seis anos, sem possibilidade de reeleição.
Presidentes e primeiros-ministros
Uma questão importante na discussão sobre limites de mandatos e revezamento no poder é a diferença entre sistemas presidencialistas e sistemas parlamentaristas. Por exemplo, EUA, Brasil e Argentina, regimes presidencialistas, possuem limites de uma reeleição, para dois mandatos de quatro anos cada. Nesse tipo de regime, o chefe do Executivo possui mais poderes, é o principal tomador de decisões, governa independente de maioria legislativa e acumula as funções de chefe de governo e de chefe de Estado.
Regimes presidencialistas costumam tender mais ao autoritarismo. Um dos casos é exatamente pela falta de transição de poder e concentração de poderes na figura de um indivíduo. Regimes parlamentaristas, por outro lado, costumam ter menos poderes na figura do chefe de governo Executivo, habitualmente com o título de primeiro-ministro ou algo similar; a chefia de Estado Executivo é desempenhada por outra pessoa, um presidente, como em repúblicas parlamentaristas tais como a Alemanha ou Israel, ou um monarca.
Principalmente, no parlamentarismo, o Poder Executivo de governo não sobrevive sem o Legislativo, que pode remover o primeiro-ministro via um voto de desconfiança ou a perda de maioria parlamentar. Essa breve explicação não tem propósito de debates ou de defesas de modelos, mas para demonstrar que não é possível comparar figuras como Angela Merkel e Benjamin Netanyahu com Evo Morales.
É frequente que líderes como esses sejam evocados em defesa de Evo Morales, muitas vezes com a acusação de “vira-latismo”: supostamente critica-se Evo apenas por ser um líder latino-americano, enquanto políticos do chamado Primeiro Mundo são toleradas. Tal comparação não procede, já que Evo Morales é líder de um regime presidencialista, com muito mais autoridade centrada no seu cargo.
Divisão boliviana
Parte considerável da opinião pública boliviana é contra a ideia de Evo Morales disputar uma nova eleição. Mesmo assim, ele possui chances de vitória, já que possui seguidores, admiradores e bons resultados na administração do país. A arma principal de Evo, entretanto, é a repetição de um fenômeno latino-americano em eleições contra lideranças governistas de esquerda: a quantidade de oposicionistas.
A oposição boliviana buscou articular uma “frente unida” para enfrentar Evo Morales e não chegou em nenhum acordo; assim como existiram fraturas na oposição venezuelana, na equatoriana e na brasileira nas eleições de 2014. Sete candidaturas foram aprovadas para enfrentar Evo Morales nas urnas em 2019. No final das contas, é possível que uma tire votos da outra, pulverizando o voto contra Evo e conduzindo-o a um segundo turno acirrado ou uma vitória que servirá para consagrar um discutível processo de continuidade eleitoral.
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