O leitor talvez mal tenha ouvido falar da Argélia, mas uma crise nesse país pode desencadear consequências mais profundas e longevas do que as da guerra na Líbia. O país norte-africano passa por uma série de protestos de larga escala, especialmente por jovens e estudantes, contra um possível quinto mandato do presidente Abdelaziz Bouteflika, pedindo por renovação e eleições livres. No proverbial, o buraco é mais embaixo quando se trata da sucessão de Bouteflika.
Uma mistura complicada de população grande e jovem, uma política engessada, um histórico de conflito com movimentos islamistas radicais, gás e petróleo. A Argélia possui uma estrutura e trajetória política recente que permite alguns paralelos com o Egito. Revoluções anticoloniais; primeiro no Egito, em 1952, dois anos depois na Argélia, com uma violenta guerra de independência contra a França, que considerava a Argélia não uma mera colônia, mas uma extensão do território francês.
Uma rápida consulta em um mapa mostra que as fronteiras argelinas são praticamente uma continuação das fronteiras francesas, uma linha que cruza o mar Mediterrâneo. Isso não é uma coincidência. Após as revoluções, Egito e Argélia tornaram-se pilares do Movimento Não-alinhado da Guerra Fria, a ideia de fazer negócios com ambos os blocos, o soviético e o Ocidental, sem compromissos profundos. Ambos países, nos momentos finais da Guerra Fria, buscam uma projeção na ordem internacional como potências regionais e abrindo-se para parcerias e dinamização na economia.
Os dois países também são marcados por um choque entre o Estado e instituições seculares contra setores islamistas da sociedade tidos como uma ameaça. No caso argelino, a disputa entre as forças armadas que, assim como as do Egito, se vêem como guardiãs de um regime republicano e secular, e os grupos islamistas ligados à Irmandade Muçulmana, resultou em uma guerra civil repleta de massacres sectários e atentados terroristas.
Guerra civil
A década de 1990 argelina foi uma verdadeira década perdida, com dezenas de milhares de mortos; o número exato não é conhecido, mas especula-se até 150 mil pessoas. Os movimentos islamistas, apoiados pelo Irã e pela Arábia Saudita, foram derrotados e banidos, e hoje os partidos que são autorizados são todos moderados, embora exista uma filiação local à Irmandade, o partido Mouvement de la société pour la paix (Movimento da sociedade pela paz). Ainda assim, esse é o primeiro ingrediente no cálculo da sucessão argelina.
Os militares e o aparato de inteligência do Estado temem que uma abertura política rápida e completa possibilite a eleição de um representante da Irmandade Muçulmana, que autorize novamente a existência de grupos radicais ou siga caminhos contra o secularismo. Tal como aconteceu no Egito em 2012, com Mohamed Morsi. A agência de inteligência argelina, antiga DRS, é uma das principais forças do país. A Argélia possui alguns resquícios democráticos, como um parlamento, partidos políticos e um pretenso revezamento de poder, mas é um Estado autoritário.
Pouca transparência nas finanças, censura da imprensa, inteligência estatal vigiando toda a sociedade e um grupo não-eleito encastelado no processo decisório. Para os argelinos, Le Pouvoir, O Poder. Bouteflika está tanto tempo no poder pois conseguia, quase de forma unânime, atrair tanto a atenção pública quanto a lealdade do aparato estatal. Ele foi o chefe da diplomacia argelina por dezesseis anos, até a morte de Houari Boumédiène, no final de 1978. Foi força importante na Guerra Fria e no mundo árabe, um dos articuladores do Choque de Petróleo em represália ao apoio dos EUA a Israel na Guerra do Yom Kippur.
Quando da morte de Boumédiène, Bouteflika era um do seus potenciais sucessores, e advogava por maior abertura econômica. As alas desenvolvimentistas radicais triunfaram e ele ficou seis anos exilado. Essa intimidade com os corredores do poder, entretanto, garantiu a confiança dos militares e do aparato repressivo. Em 1999, ele foi eleito presidente, momentos finais da guerra civil, em uma plataforma de conciliação e retomada econômica.
Nome de consenso
Seus primeiros anos no poder foram de sucesso em ambas as propostas, o que lhe proporcionou apoio popular e consolidou sua posição como mandatário do país. O tempo passou, entretanto. O tempo político desgastou Bouteflika, que concentrou mais autoridade em suas mãos e aprovou, de maneiras suspeitas, mudanças nas leis que o permitiram disputar “eleições” indefinitivamente; as aspas são pelo motivo de que eleições com censura, limite partidário e ampla vigilância estatal não são livres.
Vinte anos de governo e quatro mandatos que viram estagnação econômica, queda do preço do petróleo e os protestos generalizados em 2011, que motivaram o fim do estado de emergência em vigor desde 1992. O tempo cronológico também foi fator importante. Em 2013, aos 76 anos de idade, Bouteflika sofreu um AVC e, desde então, tem a saúde bastante debilitada, com raras aparições públicas. Em seis anos, o presidente de um país apareceu em público menos de dez vezes.
Mesmo agora, a formalização de sua candidatura foi feita por procuração, enquanto ele estava na Suíça para tratamentos médicos. Bouteflika é um pôster para um governo que age em seus bastidores. Além disso, os jovens mal sabem quem é Bouteflika. Pouco ligam para seu currículo e sua representatividade, ele é o cara que está ali na presidência por toda a vida daquela pessoa, já deu, é hora de renovar. Os argelinos que viram na vida adulta um presidente que não fosse Bouteflika estão quase na casa dos quarenta anos de idade.
Esse é o segundo elemento da sucessão. Não existe um nome, mal existem figuras públicas jovens na Argélia. Esse é um dos motivos para a suposta intenção de Bouteflika ao anunciar sua candidatura, que ele não cumprirá o quinto mandato até o fim, pretende apenas preparar o terreno para novas eleições e uma eventual sucessão. A questão é se ele, e Le Pouvoir, falam sério e aceitarão isso.
Lembra o estopim da Revolução Mexicana de 1910, quando Porfírio Diaz, após décadas no poder, voltou atrás em promessa similar e decidiu disputar mais uma “eleição”, vencida com 500% dos votos. Então a equação é encontrar nomes moderados e reformistas, que apelem aos jovens, para uma eleição que consiga equilibrar liberdade de escolha e o poder dos militares e do Estado. Uma equação muito difícil de ser solucionada, mas importantíssima.
Hoje, o governo argelino anunciou, ao mesmo tempo, que Bouteflika não irá mais se candidatar ao quinto mandato e que as eleições estão adiadas por tempo indeterminado. Ou seja, Bouteflika continua no poder, sem eleições. Apenas esticou-se o prazo para encontrarem uma possível solução sucessória. Talvez até mesmo por disputas internas em relação aos que se consideram possíveis sucessores, com a falta de consenso e quedas de braços nas sombras típicas de regimes fechados.
O futuro da região
Uma eleição argelina “tutelada” é o ideal? Não, mas, no ano de 2019, é o melhor que pode ocorrer para o país. Não pode-se deixar seduzir por um mundo ideal e utópico, a política é a arte do possível. Além disso, uma mera sucessão de Bouteflika por alguém que represente as mesmas coisas que ele, talvez da mesma geração, não aplacará a pressão popular. Finalmente, e talvez o mais importante, é necessário que os argelinos achem essa solução, pacificamente.
Interferências externas seriam desastrosas. Claro que não se deve assistir um eventual governo ainda mais autoritário massacrando sua população, mas a vizinha Líbia mostra o desastre que uma interferência externa nesse caminho pode causar. Os interesses franceses, sauditas, iranianos ou de quem for não podem se sobrepor aos desejos da população argelina. Simultaneamente, a também vizinha Tunísia mostra os caminhos prósperos que uma população pode trilhar, ainda que um passo de cada vez.
A Argélia é uma sociedade, em maioria, secular. A maioria das pessoas nas áreas do Direito do país são mulheres, incluindo juízas. O IDH das cidades litorâneas do país é maior do que a média brasileira, com sistemas públicos de saúde e educação universal. O país é rota de alguns dos gasodutos e oleodutos mais importantes da Europa Ocidental, incluindo França e Espanha. Mais de um terço da população tem menos de vinte e quatro anos de idade.
O que aconteceria se um cenário como o da Líbia se repetisse, com uma guerra civil em larga escala somada aos interesses estrangeiros? Milhões de jovens migrariam ou buscariam refúgio, especialmente na Europa, mas também na Tunísia. A segurança energética europeia seria ameaçada e, principalmente, uma sociedade secular e estável correria risco de retrocessos graves. Delicados cálculos políticos e históricos podem evitar isso, mas quem deve fazer essa conta é a população argelina.