Um marco histórico deve ocorrer neste final de semana na Irlanda do Norte. Michelle O’Neill, líder do Sinn Féin norte-irlandês, deve assumir o cargo de primeira-ministra da nação constituinte do Reino Unido. Será a primeira vez que uma liderança do partido republicano e nacionalista ocupará o posto. Isso será possível após uma reviravolta na política local e é consequência direta do voto do Brexit.
O voto do Brexit de 2016 gerou um problema quase insolúvel na ilha da Irlanda e é particularmente sensível na ilha. Pela paz da Sexta-feira Santa de 1998, a fronteira interna da ilha foi, na prática, abolida, com livre trânsito entre a República da Irlanda, país membro da UE, e a Irlanda do Norte. Diversos estudos e amostragens comprovaram que o trânsito de pessoas e de mercadorias diminuiu os episódios de violência.
O Brexit, entretanto, restauraria a fronteira, criando um impasse. A solução foi “deslocar” a fronteira para o mar. Produtos oriundos da UE que entrem em território do Reino Unido via a Irlanda precisariam passar pelos controles alfandegários nos portos no mar da Irlanda. Essa solução, por sua vez, desagradou os unionistas, tanto na Irlanda do Norte quanto em alguns setores ingleses, que enxergam uma clivagem interna ainda “culpa” da UE.
Logo após ao Brexit e em meio aos vários acordos e negociações, os episódios de violência na ilha aumentaram. Inclusive, todos os distritos fronteiriços da Irlanda do Norte votaram pela permanência na UE. A crise gerada pelo Brexit fez com que o apoio ao Sinn Féin chegasse aos maiores patamares e, em maio de 2022, o partido republicano, católico e nacionalista ficou em primeiro lugar nas eleições locais pela primeira vez.
Política na Irlanda do Norte
Nesse contexto, “nacionalista” significa defensor da união da ilha da Irlanda em apenas um Estado soberano e republicano, sem influência inglesa ou da monarquia britânica. O Sinn Féin é um partido de esquerda e com laços históricos com o Exército Republicano Irlandês, o IRA, grupo considerado terrorista pelo governo de Londres, dentre outros. Ou seja, o nacionalismo britânico anti-UE fortaleceu o nacionalismo irlandês pró-república.
Como consequência da vitória do Sinn Féin, o Partido Unionista Democrático, conhecido como DUP, o partido protestante pró-Reino Unido, travou as conversas de formação de um governo e obstruiu a posse de Michelle O'Neill por quase dois anos. Habitualmente, todos os partidos da Irlanda do Norte fazem um governo de coalizão, para manter uma administração viável, com o partido mais votado nomeando o primeiro-ministro.
Desde a criação do arranjo, com a paz de 1998, todos os primeiros-ministros foram de partidos conservadores e unionistas pró-Londres, seja do Partido Unionista do Ulster, seja do DUP. Oficialmente, o motivo da obstrução unionista foi a insatisfação com o acordo pós-Brexit. Na realidade, entretanto, evitar a posse do Sinn Féin em um momento delicado era parte dos cálculos.
A questão é que os unionistas conservadores querem conciliar duas coisas contraditórias. Querem, ao mesmo tempo, uma fronteira aberta dentro da ilha da Irlanda, sem fazer parte da União Europeia e também sem fiscalização de produtos interna ao Reino Unido. Sair da UE implicava em uma fronteira, e ela precisa ser colocada em algum lugar. Ou na fronteira internacional de fato, acabando com o acordo de paz, ou no mar.
Os unionistas agora se dizem satisfeitos com um novo acordo com Londres. O novo acordo vai injetar três bilhões de libras esterlinas na Irlanda do Norte, vai eliminar verificações rotineiras em mercadorias da ilha da Grã-Bretanha destinadas a permanecer na Irlanda do Norte e fortalece o poder da assembleia norte-irlandesa em poder protestar contra o que enxergar como um eventual exagero.
Nacionalistas e reunificação
O novo texto também reafirma a Irlanda do Norte como um reino constituinte do Reino Unido, uma tentativa de colocar no papel algum sentimento de indivisibilidade frente ao crescente apoio ao nacionalismo republicano causado pelo Brexit. Enquanto na década de 1990 o apoio popular na Irlanda do Norte pela reunificação não passava dos 40%, hoje a opinião pública sobre o assunto é dividida meio a meio.
O acordo, que é uma modificação da Convenção-quadro de Windsor anterior, ainda por cima desagradou os unionistas mais extremistas, uma minoria barulhenta. A cerimônia de posse de Michelle O’Neill certamente vai atrair muita comoção e simbolismo de um lado e protestos e queixas do outro. A principal pauta da líder republicana, entretanto, ainda está longe de ser concretizada.
O'Neill evita o termo Irlanda do Norte. Ela prefere usar "norte da Irlanda", reduzindo ao mero referencial geográfico da ilha, uma provocação à ideia de partição. A possibilidade de um referendo de unificação, entretanto, é distante. Nenhum governo britânico se comprometeria com isso no curto prazo, seria suicídio político, e o ato precisa ser proposto pelo Secretário de Estado da Irlanda do Norte, um cargo controlado por Londres.
A mesma situação não poderá ser mantida depois de, digamos, dez anos de governos republicanos e nacionalistas. O governo O'Neill pode ser apenas o primeiro. Na série de ficção científica Jornada nas Estrelas, a Nova Geração, que se passa no futuro, um dos personagens, em um episódio, se refere à “unificação irlandesa de 2024”. Isso se tornou um símbolo da causa nacionalista e republicana. Pode não ser uma profecia, mas é quase.
Bolsonaro e mais 36 indiciados por suposto golpe de Estado: quais são os próximos passos do caso
Bolsonaro e aliados criticam indiciamento pela PF; esquerda pede punição por “ataques à democracia”
A gestão pública, um pouco menos engessada
Projeto petista para criminalizar “fake news” é similar à Lei de Imprensa da ditadura