Um canal esportivo britânico revelou nessa semana os planos para a criação de uma liga europeia de futebol, com os grandes clubes de diversos países como integrantes permanentes. Algo como uma “NBA europeia” de futebol. Os dois principais proponentes do projeto seriam os gigantes ingleses Manchester United e Liverpool. O que parece ser apenas uma decisão de negócios ou algo que afeta apenas o mundo do esporte na verdade pode se tornar o próximo campo de batalha dos discursos que giram em torno da União Europeia e sua maior integração.
O esporte é uma das maiores ferramentas políticas que existe. Erra de maneira crassa quem acha que é apenas um lazer supérfluo ou, pior, mero “pão e circo”. Ele pode ser usado como pão e circo, sim, mas também pode servir para projetos positivos e construtivos. Inclusive, a diferença entre o “pão e circo” e o “construtivo”, muitas vezes, está no olhar de quem vê. Ainda assim, temos um século inteiro de momentos icônicos em Copas do Mundo e em Jogos Olímpicos para nos lembrar do potencial de mobilização, de transmissão de mensagens e de construção de relações.
Para ficarmos em exemplos recentes e menos visíveis, na coluna em que foi tratada a aproximação de Israel e Emirados Árabes Unidos, foi citado o judô como uma ferramenta que fez parte dessa aproximação. Na mais recente Olimpíada de inverno, na Coreia do Sul, as duas delegações coreanas se uniram em diversos momentos e, em 2018, os times femininos de tênis de mesa das duas repúblicas coreanas se uniram durante o campeonato mundial. No lugar de se enfrentarem, criaram um time combinado e avançaram no torneio.
Esses são exemplos do uso intencional do esporte como ferramenta diplomática ou política, mas esses efeitos também podem ser causados sem intenção, de forma espontânea. Em 2006 a Alemanha sediou a Copa do Mundo e o evento tornou-se uma espécie de festa da identidade alemã do pós-Guerra Fria, um país unificado, democrático e desenvolvido. E, claro, o caso do exemplo europeu atual. A criação de uma identidade coletiva certamente se beneficia da criação de um campeonato esportivo centrado justo nessa identidade.
Identidade regional e identidade nacional
Isso não é estranho ao nosso Brasil. Os primeiros campeonatos de futebol no Brasil foram municipais e, depois, estaduais. O mais antigo torneio brasileiro é o campeonato paulista, iniciado em 1902. Era o período da Primeira República, por vezes chamada de República Velha ou Oligárquica, um sistema político federal extremamente descentralizado, efeito rebote do unitarismo que vigorou na monarquia. Cada estado possuía seus símbolos, suas forças públicas e, claro, seus campeonatos de futebol.
Os estaduais eram os principais objetivos dos clubes. Não havia campeonato nacional entre clubes, apenas uma tímida competição entre selecionados estaduais. Colaborou sobremaneira, claro, o fato de que o Brasil é um país gigantesco e com reduzida integração física de transportes no período, o que dificultava um torneio nacional. De qualquer maneira, era o espírito da época: uma federação descentralizada, com os estados com grande autonomia, inclusive esportiva.
Com o crescente destaque para ideias desenvolvimentistas e de integração nacional, cresce também a pressão por uma unificação dos esportes. Em 1941, durante a ditadura do Estado Novo de Vargas, é criado o Conselho Nacional de Desportos. O mesmo governo que vai banir os símbolos estaduais, mantendo apenas os símbolos nacionais. Clubes de origem imigrante são obrigados a mudar sua identidade. E também no futebol que há a manutenção desses símbolos banidos, como no escudo do Sport Club Corinthians Paulista, que inclui a bandeira de São Paulo. O regional dá lugar ao nacional.
Com o pós-guerra e os avanços tecnológicos no transporte começam os torneios regionais, como o Torneio Rio–São Paulo de 1950. Já havia sido disputado antes, como edição única, e nasce com a pretensão de ser o principal torneio do país, unindo os grandes clubes dos dois grandes centros. Claro, numa visão reduzida, que descarta as potências dos outros estados. O primeiro campeonato entre clubes de caráter nacional é de 1959, a Taça Brasil. O próprio nome do caneco deixa clara sua intenção nacional, acima de todas as regiões.
A Taça Brasil seria uma antecessora da atual Copa do Brasil. O Rio-São Paulo é expandido e torna-se o Torneio Roberto Gomes Pedrosa, o “Robertão”, esse sim o precursor do atual Campeonato Brasileiro. O torneio ganha esse nome em 1971, não por coincidência período da ditadura militar, após a intensa campanha ufanista em torno da seleção campeã do mundo em 1970. “Como assim, não há um campeonato com o nome da nação?”, deviam se perguntar esses mesmos ufanistas.
Por cerca de três décadas o Brasileirão ainda precisou competir com os estaduais pela preferência no coração dos torcedores. O aumentativo de “Brasileirão”, inclusive, foi outra marca do ufanismo do período. Mineirão, Castelão, Mundão do Arruda, etc. Outro exemplo do uso político da ideia de um campeonato nacional era o lema “Onde a Arena vai mal, mais um time no Nacional”, indicando o inchaço do campeonato, com a adição de clubes para agradar lideranças políticas locais.
A questão toda aqui é: a criação de uma identidade nacional passa também pela criação de meios que integrem os diversos elementos dessa identidade. Um campeonato nacional acima dos regionais, ou um campeonato cuja final é uma disputa entre os times de duas metades do país, como na liga de basquete dos EUA, entre leste e oeste. Existe o regional, ele ainda está lá, mas agora existe algo acima dele, mais importante, mais potente, mais cobiçado e mais valioso.
Não se trata de futebol
Ao mesmo tempo, muitos vão, seja com argumentos, seja por saudosismo, lamentar o declínio dos campeonatos locais, em que o clube que antes servia de identidade da cidade ou do bairro agora não possui importância, apenas as grandes potências esportivas seduzem. E a mesmíssima coisa vai acontecer na Europa. Se o leitor chegou até aqui no sacrifício pois não gosta de futebol, peço desculpas, mas esse texto não é sobre futebol. É sobre identidade, sobre sensação de pertencimento.
A criação de uma superliga europeia de futebol terá o efeito que o campeonato nacional teve na História brasileira. Quer dizer, então, que essa liga seria fruto de uma conspiração europeísta para a criação de uma federação, um Estados Unidos da Europa? Não, por dois motivos. Primeiro, quem fala dessa teoria da conspiração quer enganar e seduzir, já que é um processo declarado, aberto. Descarado, se preferir. Jose Manuel Barroso, ex-premiê de Portugal, quando Presidente da Comissão Europeia, deixou isso bem claro em 2012, ao propor o planejamento para a federalização da Europa até 1950.
Esse tema já esteve presente aqui e certamente estará de novo, o fato é que uma federalização da União Europeia não é uma teoria da conspiração escondida como alguns tentam vender de maneira sensacionalista, mas um fenômeno explícito, visto em falas públicas. Outro exemplo, mais recente, foi o encontro entre Macron e Merkel em Aachen, no início de 2019. Simbolicamente, a cidade de Carlos Magno, o “pai” das duas nações. Existe também outro motivo.
Os proponentes da criação dessa superliga são dois clubes ingleses controlados por fundos dos EUA. Não são gastões excêntricos como os bilionários donos do PSG ou do Chelsea. São fundos que investem para tirar seu lucro. Estão interessados numa superliga por dinheiro. No mínimo, como ferramenta de pressão para extrair melhores condições contratuais nos campeonatos já existentes. Mesmo assim, a ideia da criação de uma superliga apenas com os gigantes europeus não é nova.
Internacional e supranacional
Interessante frisar que essa superliga seria com participantes fixas, não se trata de um campeonato como a Liga dos Campeões, ou seja, um campeonato internacional. Seria um campeonato supranacional. Note a sutil diferença nas palavras. O mesmo discurso ideológico que já ocorre em alguns círculos europeus será transferido para o futebol. De um lado, uma suposta elite centralizadora que não liga para o Estado nacional, seja Bruxelas, seja a superliga de futebol. Do outro, o europeu comum, que torce para o time de sua cidade, trabalhador e pagador de impostos, deixado cada vez mais de lado.
E, de fato, os atuais campeonatos nacionais progressivamente perderiam espaço, assim como os estaduais perderam no Brasil. Junto com isso, parte da identidade local. Ou nacional, no caso europeu. O que hoje é o nacional, com a federalização europeia, se tornaria o regional. A Itália seria um estado da Europa assim como São Paulo é do Brasil, com os grandes clubes lutando pela taça principal e os clubes locais relegados ao segundo plano cada vez mais.
Um ex-jogador do Liverpool sintetizou tudo isso em apenas um tweet. Stan Collymore escreveu que “se algum clube inglês aderir a uma Superliga Europeia, ele nunca deve ser autorizado a voltar (ao campeonato inglês), ser completamente condenado ao ostracismo e os grupos familiares, os verdadeiros fãs desses clubes, devem se levantar para condenar seu clube. Que eles se f. e se lembrem de onde 'tiraram a manteiga para o pão' por mais de 100 anos”. No caso, uma expressão para onde “tiraram o sustento”.
Ele se focou na identidade familiar, local, do clube criado por uma comunidade, que agora pode ser absorvido por uma estrutura maior. O mesmo sentimento que muitos dos cidadãos comuns europeus têm em relação à UE. E esse embate vai se intensificar, agora no futebol, especialmente em países ou regiões que não possuam grandes clubes, financeiramente falando.
Será interessante ver o comportamento dos agentes políticos eleitos pelo voto, já que, repete-se, essa superliga é fruto de entidades privadas, não de uma organização política. A prioridade é o dinheiro, a identidade e a política apenas estão no pacote. Novamente, a criação de uma identidade nacional passa também pela criação de meios que integrem os diversos elementos dessa identidade. Um Estados Unidos da Europa se relaciona à uma “superliga europeia”. Ou o Europeuzão, chamaríamos por aqui.
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